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Sun & Sea

de Rugilė Barzdžiukaitė, Vaiva Grainytė e Lina Lapelytė

foto Pat Cividanes _ Lisboa 2022



Rugilė Barzdžiukaitė propõe em sua encenação

a escolha mais ousada: a contemplação por Ruy Filho



Não restam dúvidas sobre as consequências de nossas ações ao planeta. Salvo alguns negacionistas insistentes, a natureza sofre e responde com igual velocidade. Extinções de espécies, destruições de biomas e transformações radicais da ambiência climática e atmosférica são alguns dos sinais mais evidentes e irreversíveis. Há ainda outros. E, dentre esses, a impossibilidade de a vida humana continuar. Nossas ações podem e estão modificando o planeta em sua fauna, flora e geografias terrestres e marítimas. Mas o planeta irá permanecer ao que dele e nele sobrar para além de nós. Afinal, a natureza não é um desenho específico do que conhecemos, e sim daquilo que, em soma, se organiza e reorganiza como estado pulsante de presença ao mundo. A humanidade simplesmente desaparece, como tantos outros, animal que é.

A ópera-instalação Sun & Sea não se trata de um aviso, está mais para um documentário poético sobre a realidade em seu estado máximo de urgência. Ambientando o espaço cênico como se fosse uma praia - com banhistas, toalhas, frutas, adultos, crianças, velhos, brancos e negros, homens, mulheres, queers e gays, casais, solteiros e solitários, Meiga (a pequena cadela), objetos comuns, filtros solares, chinelos, cadeiras, celulares e muitos livros – recria a sociedade por microcosmos que ora se colocam específicos ora integram parte de algo mais. Nada acontece além de estarmos ali enquanto cada personagem traz seus pensamentos através do canto. As interações em cena são mínimas, o que resulta em certa ordem estranha, uma dinâmica matemática que articula distâncias e momentos com geometria precisa.

É essa suspeição do acontecimento que leva o espectador, em sua condição de observador maior - posto estar acima da cena, tal como apenas o olhar divino é capaz de possuir, condição que permite perceber o quadro sem interrupções -, a ter as vozes como plano principal. Por vezes, não se sabe quem canta, não imediatamente. É preciso descobrir. Trata-se, então, não da música como instrumento de afirmação daquele que a conduz, mas das vozes enquanto exposição de suas intimidades e reflexões. Por isso, é possível compreender a sonoridade do espetáculo como outra camada instalativa. Primeiro a cena, a praia, os corpos, os pequenos gestos e encontros; depois, as palavras que povoam memórias, saudades, incômodos, incertezas e medos.


foto Pat Cividanes _ Lisboa 2022


Na maneira como os pensamentos se revelam, ainda que pareçam casuais, duas estruturas percorrem o libreto até se fundirem: as questões mais ordinárias do viver, trabalhar, amar, consumir, divertir-se, excessos, exaustões, culpas, vergonhas até a compreensão irrefutável da própria mortalidade. Por outro caminho, intercalam redemoinhos, o sol escaldante, o verde das algas nos mares, o branco dos corais, abelhas mortas, erupções vulcânicas, as estações do ano desencontradas. No encontro entre essas duas estratégias narrativas, barcos, aviões, vestidos, sacos plásticos e garrafas lado-a-lado a peixes e medusas substituindo as cores, reinventado as profundezas, a sujeira das praias, conchas sem animais, enfim, a natureza tomada por espaço de turismo devorado sem qualquer cuidado. Se o fim de tudo e o nosso é algo inevitável, enquanto o oxigênio das águas diminui até esvaziá-las de vida, restaria recriar o perdido imprimindo-o em 3D, da natureza aos entes, para quem sabe assim recuperar os sentimentos em um estado de eternidade?

A dramaturgia de Vaiva Grainytė articula de modo sutil e irônico esses percursos. São argumentos muitas vezes simples em suas construções, pois diretos o suficiente para não darem margem a múltiplas compreensões, mas profundamente perturbados de questões. A cada voz surgem elementos de contradição à passividade com a qual posam os performers limitados a seus banhos de sol. Há nisso uma diferença violenta entre aquilo que se vê em estado de espera e o ouvido no escapar dos pensamentos cantados: são corpos divididos entre estados de dentro e de fora, inabalados em suas condições de continuidade ao cotidiano capitalista e aterrorizados por suas percepções mais amplas e filosóficas. Como se a realidade fosse mais próxima ao pensamento, o estado de existência lhes é mais próprio do ficcional, algo próprio a quem fora construído por outro, feito personagens literários. É nesse limite entre um e outro que os códigos distribuídos pela areia, próximos o suficiente para comporem ambiências específicas, traduzem as tentativas de ressignificação. Seja ao ter consigo uma revista de variedade, uma sacola com que o parece ser uma inscrição ucraniana, um livro da filósofa e ativista feminista negra Djamila Ribeiro, por exemplo.

Se a potência está aprisionada no interior dos pensamentos, os objetos são pistas de leitura de quem essas pessoas comuns podem ser para além da interface pública social. Ao integrar o particular em um contexto comunitário, a praia, Vaiva Grainytė potencializa a catástrofe ambiental e o medo da mortalidade (ou do desaparecimento) como instâncias coletivas à organização de outra lógica do inconsciente. O real se impõe por estratégias distintas, caso a caso, a partir de repertórios próprios, contudo o faz de maneira a encontrar qualquer um para além de suas diferenças.

Esse estado similar do inconsciente é sistematizado também no como a música elabora os instantes de cada personagem. Por vezes, a interrupção é definitiva antes que inicie o próximo movimento, feito um ponto final que não se coloca como fim e sim recomeço. A partir das vozes como dimensão melódica principal, para quais o instrumental institui a delicadeza de acompanhamento, os silêncios merecem atenção por estarem em maior quantidade do que se espera em uma ópera. Diferente das montagens tradicionais, tem-se quase sempre mais cantores em espera do que em atuação, salvo quando o canto coral se espalha dentre todos, assim como a simplificação das notas demarcam as pausas como contribuição melódica a uma partitura que se provoca a ser especialmente vulnerável ao como o inteiro se manifesta estrutura de imagem ao som. Dessa maneira, Lina Lapelytė compõe especialmente para um estado de presença e não para ser apenas interpretado. Requer dos corpos aquilo que, por estarem ali expostos, são capazes de provocar em afetuosidade ao espectador, de modo a reencontrar, a cada retorno a uma voz ou continuidade de pensamento, com aquela, aquele ou aquilo que entre silêncios e tons alcançou o inconsciente do espectador.

Para se chegar a tanto, é fundamental se fazer uma escolha. Rugilė Barzdžiukaitė propõe em sua encenação a mais ousada: a contemplação. O espectador deve permanecer, se assim o quiser, assistir ao pouco que há para ver, ouvir o que se conta, perceber os silêncios e contemplar na soma desses elementos outro estado de convivência com o tempo e o afeto de seus próprios pensamentos. Do lado de fora do ambiente onde a plateia está, o mundo corre em outro ritmo, a vida segue vertiginosa e conflitante, o mundo assiste sua destruição ser mais e mais acelerada. E tudo o que não se tem, verdadeiramente, é a possibilidade de contemplar outros modos de vivermos, pensarmos, existirmos. Sem malabarismos cênicos, com humor sutil, provoca a ficção ao ter um ou outro banhista molhado como se viesse do mar, após sair e retornar à cena, um vendedor que percorre os caminhos entre as toalhas no chão, as crianças que seguem seus ritmos naturais e por vezes conflituam suas risadas e jogos aos pensamentos trágicos melancólicos de quem canta ao lado, a cadela que reconhece o público que a observa e rompe a quarta parede sem perceber ser esse um gesto definitivo ao entendimento do instante. São essas pequenas anotações do próprio teatro na qualidade de acontecimento a ser decifrado entre a realidade e a ficção: simultaneamente ambas, inevitavelmente nenhuma das duas.

Da mesma maneira que Rugilė Barzdžiukaitė nos convida a entrar nesse universo, faz-nos sair, ao termos contrarregras com bandeiras vermelhas acenando como se nos avisassem dos perigos próximos. Contudo, ao invés de nos levarem ao espaço de proteção, levam-nos de volta ao mundo em sua ficção de realidade. Se voltaremos a ele como quem se entrega a uma tarde de sol e nada mais, caberá a cada um. Se nossos pensamentos escolherão o trivial ou o urgente, não há como controlar. Sun & Sea aposta na contemplação como modificação poética da percepção. Perceber os detalhes, os silêncios, os tons, as horas, as histórias, o comum, as diferenças, os símbolos, as tentativas, os fracassos, ao que nos dedicamos quando temos chance de nos dedicarmos a alguma coisa.

Trata-se de um convite nada discreto para outra forma de habitarmos o planeta e compreendermos as narrativas dos corpos, que supere a capitalização desenfreada da vida e dos sujeitos tornados espécie em constante luta por superação e destruição das demais. Outra forma de perceber as coisas significa outra forma de se perceber. Há mesmo algo fundamentalmente feminino nesse existir outro. Enquanto o planeta ainda se inscrever na lógica do masculino que lhe domina e conduz à morte; a vida, a natureza, Gaia convocam ao feminino da coexistência responsável cuja urgência está no ato revolucionário de pausarmos e contemplarmos o que há de ser. O espetáculo comprova a poesia ser o estado mais afetivo às urgências dos discursos.

O Alkantra começa como se deve começar um mundo que se quer novo. Um ótimo festival a todos.

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