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SEEK BROMANCE

de Samira Elagoz

por Ruy Filho


Em documentário sobre a obra de Orlan, comentado por Derrida, a artista francesa que ganhou notoriedade por transformações radicais em seu corpo, inclusive interferências cirúrgicas no rosto para modificá-lo à aparência de máscaras primitivas, explica a ação não se tratar meramente de agir sobre o corpo como artifício estético-artístico, e sim de serem tentativas ao como a imagem interna que percebia de si mesma poderia ser projetada ao olhar externo. Consequente a essa busca pela melhor representação, dá-se sua necessidade constante de modificar-se.

Durante as quatro horas de Seek Bromance, de Samira Elagoz, essas reflexões me acompanham reativando a memória de outros e outras artistas que agiram sobre seus corpos interessados por encontrar ou representar suas identidades. Ou, ao menos, algo próximo ao que se pode crer como isso, já que tal palavra está demasiadamente gasta por tantos equívocos. Sam, como passou a se reconhecer, descobre em sua jornada outra qualidade de performatividade. E a aceita. Não se trata de ser alguém antes que se transforma em outro depois. É como se percebesse nunca ter existido ao como se enxerga agora, e a escolha por hormônios masculinos, trazendo modificações explícitas na aparência e outras íntimas e comportamentais, recupera-lhe aquele qual se entende ser. Essa recuperação do eu, desse outro que não é posterior, portanto, ao ser tratado performativamente amplia a consciência enquanto estado de mobilidade. O sujeito deixa de ‘existir estável’ para afirmar ‘existir em deriva’ sem necessitar explicações e conclusões, salvo quando indagado pelo mercado binário das identidades definitivas.

A obra de Sam tem sido discutida e premiada, inclusive com o Leão de Prata, em Veneza, e interessa, em especial, a qualidade dada à performatização do eu em sua condição mais radical de investigação, descoberta, desdobramento, ressignificação e manifestação. A potência dessa outra performatividade de si está no movimento de transitoriedade, no viés de singularidade fluída, para nos atermos às conceituações mais atuais. Dessa maneira, o contexto documental evidente em sua obra, cada vez mais presente em diversas linguagens e artistas, ganha melhores camadas. Deixa de ser o registrar-se, para ser, na observação durante o registro, o desvelamento mais íntimo e profundo da própria descoberta. Dito de outra maneira, Sam supera o documento fílmico para ter em filme a experiência performática de sua consciência sobre o corpo.

O filme como materialidade performativa a algo que não caberia ser exposto se não em registro imagético aproxima, em estratégia, aos filmes produzidos por Matthew Barney. Enquanto o artista americano descreve sua filmografia mais importante, Ciclo Cremaster, como escultórica, cuja materialidade só pode acessar pela câmera e em narrativa, conforme entrevista dada a Hans Ulrich Obrist, o trabalho de Sam Elagoz, em estética e recursos profundamente distintos aos de Matthew, traz ao perceber-se a dimensão performativa que, então sim, só cabe se acessado pela câmera e em narrativa.

Ambos lidam com as forças do corpo como construções de identidades, de gêneros, de sexualidades e sistemas de organização psíquicos, culturais, históricos, sociais e políticos. E são, cada qual ao seu modo, inventores de lógicas de insurgências sobre tais construções, pelas quais a dinâmica fluída de outro existir convida ao reconhecimento de mundos e realidades particulares. No caso de Matthew Barney, mundos míticos, violentos, sexuais, simbólicos e improváveis; no caso de Sam, mundos reais, igualmente violentos e sexuais, afirmativos, ainda que recusados pelos poderes dominantes.

Nessa linha traçada entre Orlan, Matthew Barney e Sam Elagoz, que não elaboro para compor qualquer comparação redutora e simplificadora, muito encontramos sobre as épocas de cada um. À primeira, a ação de movimento sobre sua imagem precisa da institucionalização da intervenção para ser reconhecida arte; ao segundo, provocando as lógicas institucionais com criações quase sempre inclassificáveis, distanciar-se do previsível é fundamental à percepção do estranhamento ser ele mesmo arte. Já em Sam, o real é constituição máxima de sua justificativa, para além de ser o filme um documento. Dessa maneira, o real, em Seek Bromance, é o dispositivo mais radical em discussão, como se o artista, ao mover-se por e em sua performance, alertasse de a realidade não ser nada além do que uma imposição transitória ficcional em batalha e recusa contra a fluidez que se manifesta quando e ao surgimento de novos paradigmas.

Qual a realidade de quem se é? Qual a realidade de sua presença ao mundo? Sam explode essas e outras questões sem medo de não delimitar respostas definitivas. Afinal, o que é definitivo? Pior, como seria um alguém definitivo? De fato, a presença impõe ao real certo contexto decisivo ao como nos compreendemos. Por isso, a escolha por sentar-se ao lado da tela, intercalando depoimento, narrativa e imagem, faz da presença de Sam o necessário para dar ao trabalho outro valor, algo além de apenas a projeção de um documentário. Durante o filme, ele segue ali, preenchendo o enquadramento: expande a bidimensionalidade da tela à tridimensionalidade estética do real. O passado ao fundo e o presente ao vivo interferem-se enquanto texturas. Se por um lado, sabemos, desde antes, e mediante sua presença, até onde o acontecimento chegará, a vida, o trajeto, as dinâmicas internas e íntimas convidam o espectador à cumplicidade de sua narrativa. Permanecer no cinema é colocar-se aberto ao compromisso de conhecê-lo duplamente: artista em tela, indivíduo em palco.

Para Orlan é preciso que as pessoas a percebam e, assim, afirmem suas transformações; para Matthew Barney, as pessoas afirmam o espaço de estranhamento revelado por suas escolhas; para Sam Elagoz, as pessoas afirmam a realidade em perspectiva fluida. É evidente, portanto, as mudanças dessa época. Não se quer apenas a observação nem o distanciamento, buscamos o desvelamento de algo maior ao inconsciente. Ao mover-se rumo ao corpo qual reconhece já possuir, no encontro com outra perspectiva ao próprio gênero, o artista insurge-se ao real e o supera. Nada é mais real do que ele mesmo. Nem sua historiografia. Fazer-se documento, então, é menos importante do que existir após documentado quando já é outro.

Por isso, Seek Bromance pode ser compreendido também como obra ao tempo gravado e depois. Uma obra que esfacela a linearidade temporal naquilo que não lhe cabe mais: em especial, ao como nos esquecemos que existimos para além daquilo que nos afirmam existir. Entre discussões intelectuais, por vezes casuais e aleatórias, a convivência provocada por inesperado isolamento forçado, durante início da pandemia de Covid-19, junto a Cade Moda - também performer com investigações elaboradas entre gênero e sexualidade – resiste entre conflitos, confrontos, disputas, ironias, rotinas e instantes poéticos. Sobrepõe-se a tudo o humano enquanto sobrevivência e desconfiança, durante o tempo congelado pela espera.

As cenas mais íntimas entre Sam e Cade, sexuais e de convivência, naquilo que podem ser-lhes mais próprios, não estão no filme. Pode parecer estranho, se tratado apenas como documentário de um momento tão único entre dois artistas, mas faz sentido ,quando pensado no material final como performatização de sua consciência ao corpo. Há um cuidar do outro, em certo aspecto, sem expor em excesso, sem ultrapassar o preciso, compreendendo o necessário para trazer cada um ao conhecimento do público. Isso também diferencia o filme do que se espera de um documentário. E inverte sua classificação. É importante assistir como sendo dois artistas em documentação cujo argumento é e não sobre eles.

Pode-se, assim, dividir a narrativa em duas partes: as acontecidas no apartamento de Cade Mode e as nas áreas externas. A sequência de performances realizadas no deserto nas cercanias de Las Vegas, especialmente, dobra a perspectiva performativa do projeto. São comentários estéticos sobre os dois, sobre suas singularidades, suas diferenças, suas descobertas, desafios, provocando a percepção de quanto tudo ali pode ou não ser uma dimensão a mais para ser descoberta pelo público. De fato, tudo ali o é. Sam, sentado de frente ao público e de costas à tela, confirma isso. Um filme que ocorre junto a um acontecimento inesperado, que registra a mobilidade de seu gênero enquanto se revela, que traz as consequências que confrontam o tempo. Portanto, a performatividade está mesmo na tela, na identidade e no objeto artístico da cena que se presencia.

Em nenhum momento essas três camadas são sugeridas como propositais e calculadas. Assim como essa possibilidade não é recusada, uma vez que, desde sempre, lá estavam as câmeras e celulares nas mãos dos artistas. Por não ser possível identificar o quanto existe de prévio e posterior, pouco importa à experienciação final da obra. O público precisa assistí-la como quem observa e participa, não como quem recebe e julga, precisa permitir-se percebê-lo tanto em narrativa quanto poética.

Enquanto a narrativa surpreende na forma do acontecimento, em acertado ritmo de sua edição, a poética muitas vezes usa e amplia tonalidades de erotismo pop. As músicas surgem sem qualquer recusa de serem literais ao que é sentido, assim como as ações permeiam estéticas que recordam videoclipes de décadas passadas. O que pode sugerir um ambiente estranho, no entanto, traz aos momentos diversão e doses de empatia. É parte do pop-romântico e da performance que usa a dança moderna para compor-se movimento essa aproximação com o emocional. Por isso os debates intelectuais ganham força quanto mais se estendem entre esses momentos: são conversas necessárias à compreensão de existir mais do que um jogo: ali estão duas pessoas performatizando a condição de estarem vivas e se inventarem enquanto vivem. Uma obra de coragem por suas escolhas, única em sua intimidade radical, magnífica enquanto conceitualização de movimento e arrebatadora ao como sintetiza tantas camadas ao como devemos compreender e apreender o presente.

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