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A INESPERADA MITOLOGIA DO IMPROVÁVEL EM MARLENE MONTEIRO FREITAS _ por Ruy Filho

  • antropositivo
  • 26 de nov.
  • 8 min de leitura
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As manifestações estéticas que superam as linguagens artísticas, tais como as conhecemos, não são fáceis de decifrar. Acostumamo-nos a lidar com vocabulários cênicos e performativos por parâmetros prévios desenhados durante o correr da história da arte e movimentos específicos, em definições bem delimitadas e, inclusive por isso, seguras. Quando um espetáculo é apresentado como sendo teatro, dança ou performance, essa informação estabelece vínculos ao como deveremos assistir e compreendê-lo. Portanto, a conceitualização da linguagem, ao ser previamente direcionada, funciona feito uma espécie de adjetivação de sua manifestação ao real. Esse é um dos mais interessantes aspectos a serem problematizados pela arte contemporânea, espécie de convite provocação aos criadores: poderá a linguagem voltar a se manifestar livremente; existir independente ao que dela é reconhecível e programático; capaz de abrir campos perceptivos ainda não decifrados por inteiro; oferecer dimensões improváveis tamanha autoria?


A questão requer reconhecermos a falência de possíveis respostas, pois qualquer caminho próximo de a solucionar sustentará novas fórmulas ao como identificarmos antecipadamente as criações. Dito de forma mais objetiva: responder significa criar rótulos necessários apenas à manutenção do mercado, em que tudo se torna produto de consumo ligeiro ocasional.

Alguns artistas subvertem esse paradoxo respondendo com originalidade e construção de vocabulários distintos aos habituais, para, mesmo assim, seguirem inclassificáveis. Para esses artistas, as categorizações pouco servem, pois não importam. Suas criações deixam de ser espetáculos de teatro, dança ou performance para se valerem acontecimentos estéticos. A linguagem deixa de ser adjetiva, para se valer instrumento abrigado na personalidade do criador, sem o qual nada se afirma e pelo qual tudo se justifica diante sua singularidade.


Marlene Monteiro Freitas, com panorama de sua carreira (em vertiginosa ascensão) apresentado no Festival D’Automne à Paris, entre setembro e dezembro de 2022, oferece oportunidade perfeita ao público para encontrar, conhecer e compreender essa especificidade de artista. Mesmo os mais acostumados com criações contemporâneas, vê-se surpreendido por suas abordagens da cena, da coreografia, da narrativa e dos corpos, enquanto é confrontado pela maneira como esses elementos se confundem, se observados pelas definições tradicionais.


A artista caboverdiana sediada em Portugal impregna seus trabalhos com desconstruções estruturais, em que as partes que compõem os sistemas da dança e da performance são falsamente desvinculadas, ainda que permaneçam organizadas por lógica outra, a qual pesam humor e comunicação como métodos de estranhamento estético.


“ÔSS”, criado com Dançando com a Diferença (2022), “Pierrot Lunaire” (2021), “Bacchantes Prélude por une Purge” (2017), “D’Ivoire et Chair – Les Statues Souffrent Aussi” (2014), apresentados no Festival D’Automne 22, e “Mal - Embriaguez Divina” (2020), no mesmo festival em 2021, tornam o gesto de coreografar oportunidade de elaboração poética, em especial pela escolha de os recursos não se pautarem em traduções explícitas e conclusões.


Em cada um desses espetáculos, o caos que domina os acontecimentos cênicos revela universos independentes erguidos sobre referências recolhidas na literatura, filosofia, filmes, fotografias, materiais jornalísticos, artes visuais e músicas. Construindo coleções específicas, Marlene Monteiro confronta a ordem instaurando estados ficcionais. Por isso, mais do que meras acumulações, os signos, imagens e argumentos precisam ser compreendidos ao resultado de suas convivências, de existirem simultâneos. Trata-se da organização de elementos entendidos díspares desapercebidos de diálogos estruturantes pelo cotidiano. Ao serem aproximados, ‘coabitados’, em terminologia da própria artista, o confrontamento simbólico gera como consequência o surgimento de narrativas originais.


Ter na ficção uma espécie de fronteira ultrapassada e desvelamento daquilo que sob o real se esconde implica encontrar no reinvento outra qualidade de percepção e relação. São espetáculos em que a dimensão humana é confrontada e desafiada por meio de corpos em estados incomuns, não cabíveis aos sistemas clássicos de atuação; são presenças dilaceradas, como se fosse possível existir outra manifestação dos sujeitos sociais e culturais, muito distante da conhecida. Nesses trabalhos, os objetos deixam de estar como elementos de apoio cênico ou cenografia para existirem efetivamente como corpos e sujeitos, invertendo as interpretações: os performers tornam-se complementos às materialidades objetos dos objetos. A mudança hierárquica entre quem é sujeito e quem sofre a sujeição sustenta ainda mais a qualidade ficcional das cenas.


“Idiota” (2022) e “Guintche” (2010), espetáculos solos, “RI TE Paris Intermission” (2022), duo com Israel Galván, também apresentados no Festival D’Automne 2022, carregam a ficcionalização do corpo em intensidade máxima, propondo abordagens estéticas inesperadas, cujas tentativas de explicações objetivas limitam a observação à banalização. É preciso aceitar o que se assiste, assim como o corpo reinventado e a qualidade narrativa ficcional sobre si mesmo, sem querer ir além do que ali e nele está.


Dessa maneira, a maior complexidade em seus espetáculos dá-se na condição de, ao tempo em que convidam o espectador a mergulhar em seus acontecimentos pela imaginação, imaginar em demasia pode corroer a busca da artista pelo não aprisionamento às linguagens decifradas. São comuns artigos e reflexões que classificam, categorizam ou descrevem os trabalhos como desdobramentos criativos pelos grotescos e burlescos. Em certa medida, as duas estéticas são possibilidades de oferecer ao espectador alguma entrada aos trabalhos, de compreensão mais digerível nessa espécie de antropofagia arriscada. No entanto, a nossa imaginação e o imaginativo da artista não precisam ser reduzidos ao entendível; ao contrário, podem e precisam do tom agressivo explosivo encontrado ao provocar denso confronto com o esperado e o supostamente correto na dança. Por conseguinte, a elaboração poética e coreográfica parte por outra estrutura, a de potência emocional, espécie de performatização das emoções de ambos os participantes, públicos e artistas, levando os espetáculos a acontecerem sobretudo no espaço intermediário entre plateia e palco não apenas naquilo que se enxerga, mas em especial naquilo sentido ao primeiro aspecto do ver.


É fundamental imaginar aquela e aquele em cena como alguém ou algo que não personagens, até mesmo nos espetáculos baseados em estruturas dramatúrgicas clássicas: são corpos que possuem rostos e rostos que possuem corpos, um todo híbrido, múltiplo, intencional ou não, movido ao exterior e não ao interno do sujeito; corpos que agenciam modos de existir presença ao mundo e não representações, explica a artista em diversas descrições de seus trabalhos, folhas de sala e entrevistas recentes para jornais e canais de arte. Ainda assim, há diferença entre como os corpos habitam suas criações. Nos espetáculos compostos por diversos performers, mais encenados e grandiosos, os corpos potencializam o contexto cênico ao imaginarem como abordar específicas questões por meio de coleções amplas e abertas em significados e interpretações. Já os trabalhos mais intimistas, performativos e pessoais afirmam no corpo a estetização narrativa com inevitável apreço pelo existir político do sujeito, diante a condição de ser a presença especificamente seu discurso mais radical.


Quantos corpos cabem em um corpo, então, é uma importante questão nas entranhas dessas investigações, e que requer duas percepções rápidas. A primeira se refere ao como a cultura entende o corpo e como este a percebe criticamente de volta. A segunda, o que no corpo é próprio e o que nele é construído como reinvenção. Enquanto para a primeira é fundamental notarmos tudo que lhe é imposto pela sociedade à sua domesticação; para a segunda, o reinventar implica a superação do impositivo próprio dos padrões, a fim de alcançar sentido único, original e autoral. Ainda assim, a primeira reflexão se mantém pulsante, e só conseguirá mesmo ser respondida se a linguagem demonstrar capacidade de ampliar sua experiência a partir do único meio onde consegue desestabilizar a previsibilidade: pela estética.


Por isso, os movimentos criados por Marlene Monteiro são maiores: são atitudes, discursos sobre outra narrativa ao corpo, estados de recusa das normas, das regras e expectativas. A artista sustenta as presenças em cena feito um enigma, com vocabulário inesgotável que ora agride ora diverte, sem nunca entregar ao espectador qualquer mínimo movimento e gesto capaz de redução imediatista. É preciso conviver e ser esgotado pelo que se assiste, ou ainda, submeter-se ao corpo cujo discurso importa a todos pela imensa ousadia de sua liberdade e subversão.


A tessitura dada aos corpos e como confrontam os sistemas de representação funda qualidades ímpares também às proposições biopolíticas. No arcabouço dessas criações, o sujeito está exposto por diversas investigações, desde sua materialidade mais evidente e explícita até seu inconsciente mais inacessível e desconhecido: invisibilidades, forças irracionais, mutações intermináveis, ilusões, a materialidade das vísceras, violências próprias e adquiridas, antropomorfismos e ritualizações são alguns dos temas que perpassam suas obras. Portanto, uma outra maneira de abordar o biopolítico, não mais pelo argumentativo, e sim pelo confrontar a suposta eficiência dos discursos esclarecedores, como quem justifica não ser possível outro existir se permanecemos limitados ao mesmo entendimento de nossos corpos.


A artista elabora essa outra saída à experienciação biopolítica do sujeito distanciado do panfletário por meio da criação de sua mitologia, desafiando os limites dados às representações. Mesmo assim, aquilo que em primeiro contato sugere-se hermético, em nada é totalmente inacessível. A estranheza dos gestos ainda utiliza corpos quais reconhecemos, apesar de transformados e surpreendentes, e as circunstâncias cênicas são elaboradas a partir de sistemas caóticos rigidamente programados, portanto perceptíveis enquanto escolhas calculadas, tanto em diagramação do palco quanto dos tempos de cada movimento. Nessa mitologia, os contextos incididos às figuras (e não personagens) são os ruídos em questão. E, como em qualquer mitologia, os interesses norteadores de quem a elabora surgem difusos e suscitam especulações.


Qualquer mitologia que se pretenda original só se sustenta quando percebida alguma ordem imaginativa em sua construção. Livros e filmes oferecem mais facilmente os meios para isso por ser seu recurso principal a descrição pela palavra ou imagem dos universos imaginados. As linguagens da dança e performance, diferentemente, partem de outra relação: não descrevem, necessariamente, ainda que possam fazê-lo; sobretudo, expressam-se por estados emocionais, e estes podem ou não ecoarem, serem aceitos e dialogarem com o espectador.


Significa que uma nova mitologia cênica e performativa necessita de alguma correspondência sensível capaz de provocar mudanças de estado no espectador para se valer imaginável. Para tanto, Marlene Monteiro, a cada criação, tem se apropriado de maneira mais incisiva da experiência estética provocada pela música, tanto no seu uso de ambiência quanto de condutora emocional. Faz com o som o mesmo que com outros materiais colecionando melodias clássicas e pops, em uma espécie de recorte sonoro, pelo qual o espectador é desafiado a decodificar para além do racional, em especial pelo convívio cognitivo com as contraposições inesperadas e divertidamente profanas e iconoclastas.


“CATTIVO” (2019), levada ao La Villette, instalação com centenas de estantes de partituras ressignificadas em condições e propósitos, é um bom exemplo disso. Elabora a paisagem sonora e visual com iguais interesses de serem, antes de tudo mais, sugestões de uma realidade particular. A obra resume boa parte do vocabulário da artista: ao como olha os objetos por suas dimensões de sujeitos independentes, de ser a música presença estruturante viva, das mitologias originais, ao como organiza os sistemas simbólicos a partir de corpos antropomórficos e seu apreço pelas linguagens independentes de regras estáveis universais.


Os Cadernos de Nijinski (1889 – 1950) acrescentam mais uma camada à instalação. Escritos em 1919, o bailarino já possuía a grandeza e reconhecimento que lhe guardam até o presente. Publicados integralmente apenas em 1995, revelam o pensamento caótico decorrente de esquizofrenia. Nessa soma entre o artista e a instalação, CATTIVO subverte a linguagem ao utilizar as palavras de Nijinski como quem coreografa o pensamento e as estruturas internas inacessíveis desse pensar tão próprio.


Assim são as criações de Marlene Monteiro, que podem ser compreendidas como respostas aos estímulos embrionários feitos a si, aos performers e artistas convidados com os quais trabalha para o surgimento de um pensamento próprio ao como existirem em estados estéticos ficcionais. Mesmo que a artista denomine os espetáculos como sendo coreografias, identifique-se com o dançar - o que, em verdade, faz todo sentido -, há neles algo além, algo de operístico, de performático, de narrativo (pois discursivo, em uma lógica interna intencional), político (ainda que não moralista ou dogmático), estranho (mesmo que compreensível) e inesperado (apesar de plausível). Uma dança que não se encerra na própria denominação enquanto acontecimento e carrega na amplitude do apresentado ao público originalidade até então desconhecida. É o que faz com que, desde muito cedo, seus espetáculos sejam reconhecíveis de imediato.


Se para ela, as peças desafiam as próprias expectativas, tal como já o dissera, pode-se dizer o mesmo na qualidade de espectador, só que em experiências ainda mais radicais. Afinal, estamos em casa ou nas salas de espetáculos seguros daquilo que escolheremos ver e conviver. Mas não sempre. Marlene Monteiro, de fato, impõe-nos risco, riso, susto, euforia e deslumbramento ao como pode a dança ainda ser especial ao surgimento do novo, de um Eu novo, um mundo outro, novos outros, e em tantos aspectos que se torna pouco descrevê-los, enquanto faz da linguagem seu particular inusitado e inteligente parque de diversões.


__ por RUY FILHO



*Foto Daniel Rocha




 
 
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