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FIBA 2020 I "El Público"


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El Público

de Mariano Pensotti

Teatro San Matín

23.janeiro.2020

O FIBA, em sua 13a edição, recebe sob forte calor artistas, espectadores e convidados, enquanto a Argentina inicia um novo momento político e as circunstâncias econômicas não são simples. Por ser um festival internacional, aguarda uma mistura de temas e urgências possíveis de serem investigados. Mas nenhuma deles é escolhido para abrir o festival. Não, ao menos, diretamente. O que torna a abertura rica e especial por convidar a olharmo-nos sobretudo pelo encontro com a arte. E o primeiro sopro é realizado por Mariano Pensotti e seu espetáculo El Público.

Antes de dedicarmo-nos à obra, é especial voltarmos ao artista. Em seus trabalhos, Mariano articula diversas linguagens na elaboração de seus trabalhos. Do cinema a performance, o teatro surge consequente através das estruturas narrativas cujas expansões ora são mais estéticas ora mais conceituais. Desta maneira, tem construído um vocabulário que confunde propositadamente técnica e ideia em busca de como experienciarmos as narrativas no contemporâneo. É mais do que contar histórias; estas existem e lhe são necessárias. Só que Mariano vai mais longe. Cria dispositivos cênicos capazes de ativar nossas percepções às narrativas escondidas e que antecedem as histórias quais percebemos. Esse estado anterior ao descritivo é especialmente sua maneira de olhar ao indivíduo naquilo que lhe resta de intimidade possível. E, quase sempre, precisa de muito pouco para chegar a tudo isso, revelando um domínio especial sobre a linguagem.

Em El Público isso está exposto na própria obra, se o espectador se dedicar a percebê-lo. Sendo mais direta sobre quem potencialmente são os indivíduos nas plateias e o que neles ocorre após as apresentações, em nenhum momento o diretor disfarça ser o próprio espectador seu material cênico. E, logo no início, o espetáculo que se aparenta apenas fílmico, revela uma plateia de desconhecidos diante um espetáculo qual não acessamos. São eles os protagonistas dos 11 curtas quais assistiremos durante a apresentação de El Público, formados por uma coleção de atrizes e atores impressionantes da geração argentina atual.

Como se acompanhássemos seus dias seguintes, suas rotinas, cada qual diante de acontecimentos inesperados recuperará o espetáculo assistido a partir de reflexões próprias. Não é possível desvendar se o espetáculo – um homem que, no parlamento, se passa por De la Rua, ex-presidente argentino, e vê sua vida transformada a partir disso – é quem provoca nos personagens os variados entendimentos, ou se o teatro, ao ser uma vez experienciado passa a existir ao espectador em materialidade do inconsciente, para, em algum instante, ressurgir ressignificado a partir de suas necessidades. De todo modo, os curtas resumem a experiência do teatro ampliar a consciência, mesmo que nada justifique a leitura e compreensão final de seus códigos, narrativas e signos, servindo de apoio aos argumentos mais diversos e usos quase aleatórios. Não importa. O teatro, então, por Mariano, é sobretudo vocabulário estético-poético provocador ao desvelamento e descobrimento de cada um.

Diferente dos espetáculos que espelham quem os assiste porém distanciados de suas presenças, tal quais as estruturas realistas e naturalistas propõem, El Público inverte a relação com o receptor ao torná-lo obra. Ainda que no primeiro instante os filmes sejam sobre espectadores de teatro, o público real é convidado a seguir sua própria jornada, deixar as salas (estão ocupando diversas, assistindo simultaneamente), encontrar-se com a Banda Sonora e segui-la pelas ruas em direção a outro teatro próximo. Nesse movimento, o público encontra os outros públicos e percorrem juntos, agora único, espaços percorridos pelos personagens dos filmes. A dimensão do realismo fantástico é atualizada nessa espécie de dilaceramento do tempo e da própria perspectiva do real, tornando iguais o irreal e o instante, o ficcional e o presente, o inexistente e o eu. Mariano elabora um complexo jogo de espetacularização da narrativa não mais pelo como a apresenta, e sim diante a própria capacidade do espectador em percebê-la no instante de seu acontecimento. Portanto, é mesmo o público o objeto do espetáculo qual assistimos e realizamos em iguais medidas. E também lhe é seu objeto o público anônimo e casual da rua que assiste ao público organizado pelo espetáculo, pois igualmente o assistimos enquanto somos vistos.

O teatro qual nos acomodamos para retornarmos às últimas histórias é o mesmo onde a plateia do filme assistira ao espetáculo da ficção. De forma sutil, somos levados a notar também os curtas terem sido organizados feito um trajeto iniciado no Teatro San Martin, depois pelo entorno da Avenida Corrientes, e por fim a sala do Metropolitan. As histórias chegam cada vez mais perto, até passar ao interior do segundo espaço. Como nós fizemos. Como os espectadores do filme, antes, fizeram. Significa que, em nenhum momento, o diretor abre mão do dispositivo escolhido. Amplia o acontecimento, um sobre o outro, e faz da experienciação de cada instante a revelação do anterior por meio de uma propriedade escondida na então vivida. Um exercício de grande elaboração narrativa que lhe exige plena compreensão dos seus objetivos. E conquistado com capacidade singular. Mariano se mostra cada vez mais capaz de provocar seu estilo ao reinvento.

Por fim, somos nós, os projetados no palco, tal qual os espectadores de um novo filme que se iniciaria ali e prestes a se desdobrar nos dias seguintes, nas nossas lembranças, reflexões, ecoado por citações e comparações, tentativas de nos explicarmos e aos acontecimentos que surgirem. Contudo com uma camada mais, pois, agora, além da própria peça qual fizemos parte, carregamos também a peça assistida pelos 11 personagens a partir de suas falas. Para cada um do público certamente o homem que substituira De la Rua significou algo ou remeteu a algo, mesmo sem termos visto o espetáculo. Assim como nos percebemos agora substituindo os espectadores ficcionais pelos reais. El Público reflete sobre a materialidade da experiência adquirida no teatro, diante a experiência do outro, como sendo possível de ser apropriada pelo espectador como própria. Isso se faz, inevitavelmente, pela condição de reconhecimento do outro, do corpo, do igual. Em nosso cérebro, são as células espelho as responsáveis por tornar o visto em experiência adquirida, um processo defensivo criado pela evolução há milênios. No teatro, são as dinâmicas de empatia que nos provocam reconhecimento e a assimilação da experiência externa como comum.

Nessa transposição, El Público assume uma qualidade política inesperada que nos instiga a olhar às participações enquanto jogos de manipulação entre poderes nem sempre equilibrados. Se na ficção o homem é transformado ao ser o presidente, após descobrir o poder e consequências que lhe conferiria estar em tal posição e função; o público se coloca em igual processo de transformação ao se perceber parte de uma narrativa encenada diante toda a cidade, e o quanto isso lhe expôs diferente aos demais, personagem, ficção de si mesmo. Não se trata de apenas aproximar teatro e política, mas de destituir como sendo somente da política a capacidade de teatralização do indivíduo e da politização do indivíduo como somente próprio dos discursos. É possível existir tudo isso ao mesmo tempo, e caberá a cada um definir o quanto de suas qualidades aceitará e será parte.

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Fotos: Patrícia Cividanes e Festivales GCBA.

Ruy Filho e Patrícia Cividanes acompanham o festival com apoio do FIBA.

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