Verão Sem Censura :: Gritos
Nesse último ano temos assistido espetáculos, shows, exposições, livros, festas sendo atacados pelos governantes com o intuito de impedir manifestações críticas às ideologias quais tentam impor ao país, contratos descumpridos, projetos cancelados, cerceamento e proibições de ideias e estéticas. Mais recentemente, um plano traçado pelo governo apresentou um projeto de política cultura destinado ao renascimento das artes, tendo por valores o conservadorismo cristão, concluindo que, qualquer outra busca, não seria permitida. A nova configuração de censura no Brasil se deu por burocratizações ilógicas e ameaças aos funcionários públicos responsáveis pelas escolhas dos projetos e artistas em diversas instituições. Diante tanto, o Secretário Municipal de Cultura de SP, Alexandre Youssef, em uma ação reativa convidou todos aqueles proibidos e censurados, além de outros que historicamente passaram por condições semelhantes nas décadas passadas, e construiu um festival urgente: Festival Verão sem Censura. Tive o prazer de ser convidado para mediar e refletir juntos ao público e artistas em três espetáculos: Caranguejo Overdrive, Gritos e A Mulher Monstro. Aqui, as três reflexões curtas às aberturas dos encontros para as ideias seguirem reverberando nossas reflexões.
______
Gritos
Cie. Dos à Deux (RJ/FR)
18.janeiro.2020
E se o outro fosse apenas alguém? E se o ser alguém fosse apenas isso? E se pudéssemos ser apenas nós mesmos, como existiríamos ao outro? E o outro a nós? Parece simples, mas o contemporâneo tem sistematicamente colocado em dúvida a propriedade de quem somos ou, ao menos, tirado a possibilidade de nos reconhecermos. Sem sabermos sobre nós, não chegaremos ao diferente. Sem termos o espelhamento, nunca nos enxergaremos. Isso é um fato. E sempre foi resolvido assim, da psicanálise à arte.No entanto, estabeleceu-se uma pornografia da presença, em que o existir é exposição máxima ao olhar e não ao ver. Essa complexidade tem delimitado nossas condições. Não somos mais alguém e sim sujeitos que devem, como tais, responder a uma série de preceitos exteriores e impositivos. E nada mais próprio a isso que ter nos corpos a dimensão de controle sobre nossa maneira de existir ao outro.Por isso, corpos passaram a ser perigosos. Em suas partes, em suas particularidades, em suas tentativas, mas também em suas presenças e discursos. Pois o corpo, antes de mais nada, agora, discursa apenas ao existir, dado q só é possível existir se em relação.Ao atingir os corpos e até mesmo proibi-los, provoca-se um distanciamento da qualidade maior de nos reconhecermos apenas humanos. Algo tão inicial que deveria estar antes de qualquer outra classificação ou descrição. Não importa, o corpo se fez discurso político e de políticas e agora não há mais volta, se não o existir sujeito aos interesses.Mas é preciso compreender ainda que Sujeito não é aquele que determina a si sua participação ou pertencimento ao real, mas quem se sujeita, está sujeito, e responde pela presença uma urgência de realidade só possível pela ação. Somos todos sujeitos do nosso tempo. E sujeitos que estamos a agir, nos cabe, especialmente, ir em direção ao outro por aquilo que não está limitado ao corpo: sua humanidade.Cabe nisso a transição entre o discurso e o afeto. Permitir-se ser o meio de afetar, de igualmente ser afetado, e na intersecção do encontro estabelecer vínculos de afetuosidade apenas pelo reconhecimento do comum. A isso, alguns, talvez sobretudo os artistas, tenham insistido em chamar de amor.Assim é o teatro, o amor em estar ao outro, com o outro, em descoberta do outro e de si. Uma espécie de corpo que se manifesta pela possibilidade do afeto acontecer na qualidade de poéticas e inventos singulares. Por isso, o teatro e é também a dimensão de um discurso dos corpos quais abriga e quais se ausentam, ampliando a urgência de todo aquele que não está.Os que combatem o amor, o afeto e os encontros entre os comuns, os que tanto quererem classificar e diferenciar para instituir valores e distâncias, e não para apenas perceber suas particularidades, sabem os perigos das salas de espetáculos, com suas plateias organizadas entre desconhecidos que passam a viver uma experiência única, criando um pequeno e inicial laço.Em Gritos, os corpos são ainda mais os discursos dos que estão e dos que não. São presenças simbólicas que ofertam ao espectador o reconhecimento dos discursos silenciados por corpos destituídos dos convívios sociais e culturais. Neles, a condição do outro reage pela animação dada ao imaginário, como se só fosse possível acessá-los pela sugestão e não pelo real.Ainda assim, aqui eles passam, ora perdendo partes, ora revelando pedaços, ora reinventando as suas possibilidades. E talvez esse seja um dos maiores exercícios possíveis de serem dado ao amor no teatro: permitir o outro existir, seja como for, contrariando as ordens e os mecanismos de opressão.Quando se recusa um espetáculo como Gritos, são esses corpos que não se quer públicos, comuns, iguais e ainda assim outros. Mas são também a tentativa de nos fazer acreditar que podemos viver sem eles. E isso não é verdade. Em cada um, a cada outro, trans, mulher, refugiado, criança, seja quem for, em cada um está uma parte que também é nossa, pois só ela é capaz de nos desvelar um pouco mais a nós mesmos. Se silenciados, também nós somos impedidos de nos percebemos. Até chegar o instante em que seremos incapazes de notar que também nós deixamos de existir ao mundo.
R u y F i l h o
registros: Patricia Cividanes
---------------------------------------------------------------------------------------------------------
Ruy Filho: mediador convidado pelo festival Verão Sem Censura