Verão Sem Censura :: Caranguejo Overdrive
Nesse último ano temos assistido espetáculos, shows, exposições, livros, festas sendo atacados pelos governantes com o intuito de impedir manifestações críticas às ideologias quais tentam impor ao país, contratos descumpridos, projetos cancelados, cerceamento e proibições de ideias e estéticas. Mais recentemente, um plano traçado pelo governo apresentou um projeto de política cultura destinado ao renascimento das artes, tendo por valores o conservadorismo cristão, concluindo que, qualquer outra busca, não seria permitida. A nova configuração de censura no Brasil se deu por burocratizações ilógicas e ameaças aos funcionários públicos responsáveis pelas escolhas dos projetos e artistas em diversas instituições. Diante tanto, o Secretário Municipal de Cultura de SP, Alexandre Youssef, em uma ação reativa convidou todos aqueles proibidos e censurados, além de outros que historicamente passaram por condições semelhantes nas décadas passadas, e construiu um festival urgente: Festival Verão sem Censura. Tive o prazer de ser convidado para mediar e refletir juntos ao público e artistas em três espetáculos: Caranguejo Overdrive, Gritos e A Mulher Monstro. Aqui, as três reflexões curtas às aberturas dos encontros para as ideias seguirem reverberando nossas reflexões.
______
Caranguejo Overdrive
Aquela Cia. de Teatro (RJ)
17.janeiro.2020
Foi Dostoievski, em Notas do Subterrâneo, quem escreveu ao personagem central a cruel conclusão: não consegui me tornar nada, nem mau, nem bom, nem canalha, nem homem, nem honrado, nem herói, nem mesmo um inseto. 50 anos depois, quando Kafka escreveu Metamorfose, o primeiro parágrafo expunha o homem que, sem qualquer argumento e explicação, acordava transformado em inseto. Começou nesse parágrafo uma revisão da literatura que se expandiu para o entendimento do como elaborar uma narrativa e depois à filosofia e o pensar o mundo.Caranguejo Overdrive é exponencialmente consequente aos dois. Se para Kafka o homem virara bicho, agora o homem se mantém homem, porém animalizado por seu convívio com o ambiente, pois o mangue que o abriga expande a condição de ser um lugar ao de ser ambiência, cuja singularidade determina outra maneira ao indivíduo de existir e pensar. Esse homem-caranguejo desconhece muito do que está estabelecido como civilidade e só quando se transfere para lutar a Guerra passa a compreender seu desenho humano.Todavia, é na guerra que a animalidade se concretiza em potência. Entre a guerra no mangue - em exigência por sobreviver da fome ao isolamento -, e a guerra da guerra - em sua condição de sobreviver ao outro -, as violências se distinguem pela presença do próprio homem enquanto centralidade de sua história. O estado binário da guerra, então, é mais do que entre dois lados em conflito, é também a busca por reencontrar o humano para além dele mesmo, em seu estado mais próprio e menos consequente aos interesses e manipulações. Matar caranguejo para se alimentar. Mas também matar homens por matar, é sua confusão. E tudo se torna mais do que apenas circunstâncias e perspectivas.Um passo à frente e você não está no mesmo lugar, diz o homem caranguejo. A história não lhe esperou, avançou sem ele, enquanto permaneceu escondido no mangue e na trincheira. Essa foi sua armadilha. Nunca lhe foi verdadeiramente possível deixar de ser somente um animal.Descobrimos durante seu lidar com a distância entre os dois habitats, limitado que está por uma existência em estado de fome insolúvel, que temos nós tantas outras ausências mais nos aprisionando em nossa animalidade ordinária. Somos igualmente homens-animais, e parte dessa desumanização ocorre ao nos provocarem desconhecimentos dos espaços quais pertencemos, sejam físicos, reais, concretos, estruturais, simbólicos, políticos, culturais, filosóficos.O personagem, ao tentar se reinventar e pertencer, entregando-se ao outro como mão-de-obra, permanece inferiorizado por seu utilitarismo servil, escravizado por sua dependência construída e falseada pelo sistema. O quanto estamos distantes dessa mesma condição? O quanto a manipulação não tem levado a produzirmos discursos animalizados em seus argumentos primitivos?As tantas representações do enfraquecimento do indivíduo no espetáculo parece requerer um grito de desespero à favor do homem. Para além das críticas aos sistemas, poderes, mecanismos de controle e submissão, Caranguejo Overdrive procura o homem que se perdeu dele e nele mesmo. E, aterrorizantemente, o homem hoje parece só ser viável se observado sob a perspectiva de um bicho. Só que esse homem-animal é tudo, menos ingênuo; é apenas simples na complexidade de sua amplitude. O problema é que sem um pouco de ingenuidade, talvez o homem se torne incapaz de sonhar e, por conseguinte, reagir.Ao sonho, nos ajuda o teatro. Em certo momento, o personagem diz sobre seu mundo: um buraco preto, quente, lamaçal. Nele sustenta sua proteção, existe livre, ainda que seja paradoxalmente seu maior perigo, pois sabem os catadores que ele ali estará. Curiosamente, por ser sobretudo isso também teatro, percebo-nos em igual condição. Estamos também em um buraco escuro, quente e lamaçal, ainda que metaforicamente.Ao entrarmos na sala seguimos a uma espécie de esconderijo às avessas, pelo qual cada um é convidado a pertencer em coletivo. Nesse buraco sombrio está a liberdade de sermos quem pudermos e quisermos; os artistas literalmente; nós em pensamentos, e isso é radicalmente perigoso, pois toda transformação é por si a ameaça de provocar dúvidas e oferecer perguntas novas. Assim, o teatro, em sua manifestação de esconderijo, traz igual liberdade e risco a nós homens-animais-crustáceos.No espetáculo, a subversão está em oferecer pelo poético dimensão política ao convívio. Faz do buraco cênico o desvio ao submundo das vontades e ideias, e por ser simbolicamente nosso lamaçal o esconderijo confere a mesma exposição máxima como ao animal. Entrar aqui é arriscado, portanto. É como se gritássemos na porta desafiando as normas e valores. Caranguejo Overdrive faz isso, faz do grito algo mais profundo, berra em corpos, palavras, bateria, guitarra revelando o passado ser uma imagem espelhada do presente.Entrar em um teatro é já muita coisa aos dias de desmonte cultural. Entrar em Caranguejo Overdrive é potencializar a redescoberta da liberdade em ser outro, em querer outros a uma realidade qual não se quer, até, quem sabe, não pararmos mais de querer algo maior e diferente da história que nos é imposta.Caranguejos podem ser deliciosos, mas cuidado, eles mordem. E diante o medo da mordida, eles pensam, melhor que se destruam os mangues. Sejam eles literais ou escondidos nos porões dos teatros.
R u y F i l h o
registros: Patricia Cividanes
---------------------------------------------------------------------------------------------------------
Ruy Filho: mediador convidado pelo festival Verão Sem Censura