Satyrianas 2019
PROJETO DIÁLOGOS faz parte do Satyrianas desde 2010
CRÍTICA IMEDIATA: as resenhas são escritas imediatamente após o término dos espetáculos
__ Pequenos Perversos Polimorfos
De: Helder Parra
Direção: Higor Lemo
Elenco: Carla Roeher, Gabriela Fazuna, Helder Parra, Higor Lemo, Paula Barros.
Espetáculo SP Escola de Teatro
Logo de início, os atores nos lembram de não ser possível vivermos em constante manifesto. De fato é preciso mais ao indivíduo para superar as insistências imposta por um cotidiano que tanto nos requer assim e, por conseguinte, nos limita a esse estado de existência. Por serem muitas as maneiras de existirmos, inclui-se a alguns também a condição do ser artista perante a complexidade da própria época. É nesse entrucamento que o espetáculo inicia seu processo de aproximação com o espectador: revelando-se manifesto, em paradoxal discurso sobre quem se é e o momento. Se não cabemos manifestos todo o tempo, o mesmo pode ser dito à arte enquanto manifestação. Mas como erigir uma experiência diferente ao outro se a própria ação é iniciada por discursos?
Construída por textos e cenas independentes, a colagem não necessariamente prejudica o andamento do espetáculo e poderia ser uma boa estratégia trazida junto a direção. A fragilidade – ainda que os textos sejam em sua maioria interessante – é a desconexão entre as partes fazendo com a estrutura não atinja uma totalidade, salvo a quem acompanhar na colagem uma espécie de sobreposição de ideias e sensações. Novamente as ideias são essenciais ao entendimento do que se quer atingir. E ideias trazem sempre o risco inevitável de se portarem manifestos. O que pode confundir a estratégia do espetáculo é o próprio entendimento do que seriam manifestos. Ao se atribuir qualidades poéticas a um instante, não lhe retira a possibilidade de acontecer ao outro por tal perspectiva. Ao contrário. O questionamento da realidade ou das imposições políticas, culturais, sociais e outras condiz com a subversão de sua experienciação pelo parâmetro inverso. Não mais a crueldade e violência, e sim a docilidade, o convite e o toque gentil de um abraço que metaforiza um beijo entre pessoas e não apenas corpos e o que neles são vistos ou determinados.
Reconhecer o outro como alguém presente é a dimensão mais ampla apresentada pelo espetáculo, só que é necessário assumi-lo enquanto manifesto, por mais que isso possa parecer estranho. São os dilemas desse momento aos quais criar argumentos e contradições exigem dos artistas uma imensa capacidade de subversão. Durante toda a apresentação é exatamente esse o tom que falta para que manifestação e contraponto se coloquem em fundamentais confusões: subversões. O exercício estético dialoga com eficiência aos códigos das emoções quais quer atingir e construir. No entanto, há tanta precisão e controle no minimalismo de cada momento, presença, entrada, saída, canção, fala, iluminação que a própria emoção, se alcançada, determina sua potência como manifesto, ainda que em busca da humanidade do espectador.
Não fosse o primeiro instante, em que se coloca em dúvida o argumento qual acabará sendo utilizado a seguir, tanto como conceito quanto estratégia, o espetáculo seria um apelo intuitivo a favor dos convites e não apenas das vontades. Como apresentado, Pequenos Perversos Polimorfos traz artistas com vontades e sinceridades grandiosas, nada perversas e muito bem definidas em seus ideais. Um pouco de caos e perigo ajudaria a duvidarmos se suas próprias manifestações.
É preciso terminar observando algo inesperado: poucas são os espetáculos recentes com canções tão belas em voz tão íntima. Um cantar q, tanto mais do que um abraço coreografado, esse sim beija o público como um sopro de um manifesto poético inclassificável.
POR RUY FILHO
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__ Entre o trem e a plataforma
Texto: Utópica Cia Teatral e finalização dramatúrgica de Daniela Carinhanha e Diego Lima
Direção: Diego Lima
Elenco: Bianca Oliveira, Daniela Carinhanha, Diego Lima, Nathalia Della Fuente e Vinicius Secco.
Espetáculo
Giostri Livraria Teatro
É sobre o abismo entre o trem e a plataforma, sobre o vão, vala diante de seus pés que o texto da leitura dramática de "Entre o trem e a plataforma" se adensa. Há um abismo que precisamos cruzar cotidianamente nas grandes cidades. O olhar atento precisa deixar os pés em estado de prontidão ou então você é sugado para esse espaço oco em que seguem os trilhos. É nesse espaço entre, meio, nesse espaço vazio, onde a poesia do texto ganha contornos. O vão é o espaço que separa quem fica, quem está, o presente (plataforma) de quem vai, de quem segue, o futuro (o trem). Nesse sentido, a poesia traças linhas mais concretas ao trazer a naturalização da paternidade ausente e não assistida. Segundo o IBGE, existem no Brasil 5,5 milhões de crianças sem pai no registro. Em um Brasil sem pai, o termo mãe solo tenta dar conta da infinda quantidade de mulheres que precisam criar seus filhos sozinhas e de forma autônoma. O texto expande a metáfora, a poesia e os dados reais para criar inúmeras imagens para as cidades “Alegra”, onde só quem vive são mães, mulheres e filhos abandonados pelos pais; “Progresso” e “Tortura” – cidades inventadas que bebem na poética de Ítalo Calvino. O texto aponta para um tanto de possibilidades imagéticas que estão enraizadas nesse nosso imaginário que naturaliza a paternidade ausente criando paralelos entre os antônimos "ir" e "ficar" e toda a dor e delícia que os alimentam. As duas palavras precisam ser sempre compreendidas conforme o ponto de referência, mas por que estamos acostumados a lidar com a imagem da mulher que fica e do homem que vai? Da puta que pare e do pai que parte? O texto “Entre o trem e a plataforma" nos convida a refletir sobre a plataforma como a mãe que acolhe e ali está sempre presente para ser seu chão; o trem como o pai que seu fluxo natural é seguir, passar, ir em frente; e o vão como a criança que vive nesse espaço-meio, na busca por conectar-se a um dos lados. Nessa busca, a esperança é alimento para quem desconhece o outro. As crianças crescem em “Alegra” sob o julgo do abandono de seus pais que, assim que ouvem o apito do trem, são tomados pelo desejo súbito de seguir, sem olhar para trás, sem compreender que a vida tem passado e presente e não apenas futuro. Elas crescem no estigma de que a vida se repita, assim como se repetiu com sua mãe, sua avó, sua bisavó. A esperança dura o tempo da chegada de um novo trem e da partida de um novo pai. Como romper esse imaginário reproduzido, como construir fugas e novas rotas de vida?
POR ANA CAROLINA MARINHO
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__ Entrevista compulsória
De Fábio Brandi Torres
Direção: Fernando Haro
Elenco: José Netho e Keila Taschini
Dramamix
SP Escola de Teatro
Um jornalista escreve uma matéria sobre escritores reclusos e acaba divulgando o endereço de algumas casas. Fãs começam a invadir as casas dos escritores reclusos. Uma das escritoras arma uma armadilha de urso em seu jardim. Um fã cai na armadilha. A escritora, apesar de alegar que a armadilha era parte de sua pesquisa para a escrita de um livro, é condenada a pagar cestas básicas e a fazer uma entrevista compulsória. O jornalista que faz a entrevista é o mesmo que fez uma matéria onde seu endereço acabou sendo divulgado. Nessa sequência de causas e efeitos, a dramaturgia dessa cena curta é construída. Os atores brincam e jogam com com os personagens que ora se sentem acuados, ora se sentem poderosos. O poder que cabe a cada resposta é a sacada que conduz o emaranhado da dramaturgia. A rapidez das perguntas não supera a sagacidade das respostas. A curiosidade é a armadilha de urso, instiga e captura o olhar desatento. É exatamente isso que nos instiga: esmiuçar a dor até ver o outro pelo avesso ou até encontrarmos algo que o incrimine de vez. É assim que “Entrevista Compulsória” se desenrola, aproximando-se de estratégias próprias da televisão em que ficamos absortos diante de entrevistas com suspeitos de crimes hediondos. O Fantástico é sagaz nisso. Arma uma entrevista antes mesmo da prisão do suspeito. A televisão constrói o tribunal, o entrevistador é ora promotor ora advogado de defesa, o entrevistado o réu e o telespectador o júri popular que deve definir se o entrevistado é culpado ou inocente. Em “Entrevista Compulsória” a entrevistada porém não nega que armou a armadilha de urso, a finalidade é que fica em aberto, abrindo um leque de possibilidades e de conclusões sobre o ocorrido. A um dos personagens cabe apenas perguntar e ao outro responder. Cada pergunta, porém, é repleta de supostas respostas e de condenações. As respostas por sua vez abrem infindas portas. Nesse jogo de desvender as motivações e compreender a entrevistada/réu somos absorvidos pela sua mente. Ela arma inúmeras outras armadilhas em sua casa e em suas respostas. Para sair ileso, é preciso relembrar exatamente o caminho feito para chegar. Mas você lembra? Provavelmente seremos capturados pela nossa ansiedade e curiosidade em chegar logo sem notar o percurso, sem prever os obstáculos.
POR ANA CAROLINA MARINHO
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__ Vida que segue
Texto: José Simões
Direção: Hamilton Sbrana
Elenco: Maria Helena Barbosa e Júçio Scandolo
Dramamix
SP Escola de Teatro
“Sempre nos acostumamos com as repetições”.O diálogo acontece enquanto as caixas de mais uma mudança são empacotadas. No corpo, sinal do tempo. Velhas memórias de uma vida que caminha mais próxima do fim do que do início.Com uma abordagem delicada e envolvente, um pequeno frame na vida desse casal nos leva a refletir sobre vida, morte, perdas e nos faz indagar sobre as mudanças naturais e propositais da vida.Questionamentos profundos e necessários.Quantas vezes será que eu mudei?Mudei de forma, de lugar, de opinião, de gosto, de um grupo para outro, de trabalho, de casa.O que foi consciente e o que simplesmente aconteceu? Onde as minhas escolhas me levaram? O que foi deixado ou perdido pelo caminho? Desde simples objetos até a infância. A troca da boneca pelo salto alto, o adeus às pessoas que amei, àquelas que me desvencilhei. Os lugares que nunca retornarei. A juventude que passou como um sopro. A idade adulta que levou meus melhores anos com todas as responsabilidades, a idade madura em que sinto que faço hora extra.“Sempre nos acostumamos com as repetições”.E quando nos cansamos? Em que momento esta dádiva deixa de ser?A preparação para uma vida inteira que termina em morte. Esta última também requer preparo.Podemos escolher quando partir? O que deixar para trás? Mesmo que esta escolha seja deixar o corpo para trás?Momentos sensíveis e sinceros.Ao final, somente o “eu” é dono das memórias, das lembranças, das escolhas e do elemento principal, chamado existência.A cada mudança mais leves e livres nos tornamos. A liberdade é um direito e pode ser sim também uma escolha.
POR RENATA ADMIRAL
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__ Uma vida qualquer
De Rodrigo Soares
Direção: Thiago Brianti
Elenco: Cibele Gonçalves, Dani Bavoso, Roberson Lima, Stephanie Lourenço, Tales Ordakji
Espetáculo
Estação Satyros
30 minutos, uma leitura dramática e a certeza de ver um ótimo texto na boca de ótimos atores. “Uma vida qualquer” mergulha nas reverberações de um atropelamento na vida das pessoas que o presenciam, mas não se trata de compaixão e alteridade, ao contrário, refere-se ao descaso, ao desamor e a morbidez que brota quando nos deparamos com um obstáculo, um impropério ou quando lucramos com um evento triste. Não se trata de culpa ou ressentimento, ao contrário, apenas refere-se a como se sair bem diante de uma situação, por mais traumática que ela seja. Não se trata tampouco de resiliência, visto que os corpos das personagens (com exceção da mulher do morto) não reconhecem o choque, o trauma, apenas olham para a situação e buscam saídas que os presenteiem com algum tipo de promoção social, emocional, financeira... Impossível não refletir sobre o que é falado dentro de um vagão do trem quando o motorista avisa que o trem está parado devido a usuário na via, vulgo acidente ou suicídio. Retiradas as exceções raríssimas, o que se ouve é “precisava se matar e atrapalhar a vida de tanta gente?” ou “logo agora alguém decide se jogar?” ou ainda “agora conseguiu atenção”. “Uma vida qualquer” traz à cena um humor mórbido, com um ritmo que nos presenteia com frases inesperadas, quebras de expectativas e risadas desconcertantes diante de personagens que apesar de arquetípicos encontramos correspondências reais com o nosso cotidiano, provoca no espectador uma sensação ambivalente entre a risada perante o inescrupuloso e o distanciamento diante da compaixão forçada. Corpos estão estendidos no chão, corpos comuns, desconhecidos ou sem nomes, e comumente travamos duas saídas possíveis: ficar e filmar ou seguir e esquecer. Talvez até lembremos por alguns instantes, até que precisaremos, logo mais, atravessar um novo corpo estendido e seguir, afinal não dá pra sofrer ou se compadecer toda vez. Entre a virtualidade e o desamor, seguimos atravessando corações e vidas inteiras expostos no asfalto quente das grandes cidades. Somos as ervas daninhas crescendo nas fissuras das calçadas.
POR ANA CAROLINA MARINHO
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__ No Coração da Civilização
Texto: Flávio Goldman
Direção: Hugo Coelho
Elenco: Décio Pinto, Marcelo Marathony e Patrícia Gordo
Dramamix
SP Escola de Teatro
Representar o presente a partir do teatro não é incomum e tampouco desimportante. O aspecto cronista faz da cena um encontro com o imediatismo do instante e dos acontecimentos enquanto oferece maior aproximação do público a uma leitura mais incisiva de sua realidade. Ainda que isso seja menos instigante enquanto projeto artístico, ao dramaturgo requer um profundo olhar sobre a realidade, afim de traduzi-la por ângulos inesperados e fundamentais. Dessa maneira, o dramaturgo cronista utiliza-se da linguagem teatral para contemplar a realidade e desta como material de desvelamento de seu tempo. Encenar tais espetáculos não exigem, todavia, a mesma utilização do real, da realidade ou da verossimilhança. Os melhores exemplos em nossa própria história são mesmo os espetáculos em que encenadores subverteram a lógica realista das crônicas retirando-lhe o aspecto hiper-representativo para criarem linguagens próprias. Mas há um vício que estabelece a maneira de representar o real e ele não vem necessariamente da prática teatral e sim do nosso convívio com o televisivo. A confusão é ainda maior, quando se passa ao caricato ou construções de tipo, como quem quer, por tais recursos, afastar do televisivo e afirmar qualidade teatral.Muitos desses labirintos são explícitos em No Coração da Civilização. Ao tempo em que a dramaturgia de Flávio busca instituir tipos e acontecimentos para traduzir e representar o presente, a direção de Hugo intensifica ainda mais a tipificação ao escolher atuações exageradas. A consequência é o achatamento dos personagens que deixam de dialogar ao presente pela qualidade de arquétipos para se apresentarem recortes limitados. No contexto atual, escolher tais caminhos parece um facilitador à realização do trabalho. Uma vez imediato o entendimento de personagens e narrativa, sobra ao espectador acompanhar o desenrolar até sua conclusão. O teatro, por sua vez, deixa de existir como acontecimento à experienciação do mundo, do civilizatório, do humano, para servir ao cumprimento de revelações. Mas quais, já que o assistido é exatamente o esteriótipo da realidade reconhecida? É preciso que o espetáculo, em suas diversas estruturas, elabore um jogo ainda maior sobre o real - não apenas por metáforas ou informações a serem descobertas, tal como se insiste no entendimento do dramático – afim de colocar o próprio real em desconfiança diante o que dele se reconhece. Por isso a importância de uma direção que recuse o literal ou caricato a partir do proposto pelo texto. Um espetáculo cujo valor esteja na dimensão de sustentar a realidade a partir da ampliação de suas dúvidas e não obviedades. Somente assim, tornado o teatro um exercício de pensamento dialético e simbólico se atingirá a realidade em seu dinamismo e mutabilidade. Como está, pouco supera do próprio querer estar em cena, o que é sempre um bom estímulo para fazer teatro, correndo o risco da importância ser mais própria do que coletiva.
POR RUY FILHO
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__ Trinta
Texto: Renato Andrade
Direção: Renato Andrade e Tatiana Ribeiro
Elenco: Alberto Pereira Jr, Alex Huszar, Angelina Trevisan, Cintia Takeda, Di Pimenta, Drica Czech, Erica Massis, Francisco Costa, Fernanda Estapafúrdia, Gabi Costa, Gabriela Lois, Gerson Almoster, Gui Conceição, Gustavo Barbiero, Iona Damiana, Letícia Tozelli, Maira Cardoso, Maíra Machado, Mari Morena, Maria Raro, Marília Viana, Marlene Prado, Michelle Gabriolli, Osmar Pereira, Patrícia Vieira Costa, Rejane Souza, Renan Lucena, Renan Suto, Roberta Figueira, Rony Álvares, Sandra Lira, Stephanie Degreas, Tatiana Ribeiro, Vicente Hugo Pereira e Warner Borges.
Dramamix
SP Escola de Teatro
O clima é de festa e somos convidados a participar e, quem sabe, nos permitir embarcar nesta proposta coletiva. Festa de quem e para quem?As rodas de conversa são estabelecidas pelos anfitriões. Monólogos políticos, sociais, culturais. Histórias. Mais importante do que a fala é a interação das pessoas dentro deste movimento.A possibilidade da escuta. A tentativa. A troca ocorre, vezes interessada, por muitas vezes desinteressada. Confusão de sons. Vozes dissonantes.Entre tantas, uma frase me chama a atenção: “o que se diz quando está precisando morrer”.O que se diz, como se diz? Como ganhar a atenção do outro? Como se fazer ouvido? Compreendido? Como estabelecer esta relação na vida, no palco, a dois, em grupo?O sentimento que fica é que o ser humano está surdo em relação ao outro, em relação ao que é diferente, em relação ao que é incômodo.A festa gera desconforto. O exercício de calar e escutar.
POR RENATA ADMIRAL
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__ A todos os homens que nunca me amaram
De Carol Caldas e Amanda Cristie
Direção: Carol Caldas
Elenco: Amanda Cristie
Espetáculo
SP Escola de Teatro
Gatilho certo para que meu coração amoleça: é sobre a minha vida, diz a atriz. O público é disposto como quiser, ocupando o espaço vazio, não fosse o corpo da atriz em pé presente e inteiro, convocando a escuta e o olhar atentos. Parte do público sofre da condição que eu: baseados em fatos reais é um convite para olhar com mais compaixão para a obra; outra parte se distancia, acessa o celular como para fugir do que presencia. Será o cansaço de ver tantas histórias dolorosas sobre abusos e violências contra a mulher? Será a forma como se fala sobre o assunto que desagrada? O que será? Como olhar para o outro que se oferta em estado físico e em realidade e se desviar da presença? A atriz Amanda Criestie revela algumas experiências traumáticas que marcaram sua infância e que seguirão consigo, estão inscritas em sua história, em seus medos e temores, em seus amores. “A todos os homens que nunca me amaram” provoca, desde o título, o perfil de seu interlocutor, convoca os homens a dialogar, a olhar para suas ausências em presença, a olhar para a violência de seus desejos e gestos, a perceber as mágoas e traumas que suas liberdades excessivas causam. As mulheres por sua vez seguem em comunhão com a atriz, ainda mais quando suas presenças são convocadas em ações interativas. O olhar de Amanda Cristie nos conduz com bravura e serenidade, sua fala é certeira quando olha para o público e dialoga, reconhecendo a presença dos distintos corpos que compõe a plateia. É nesse momento que o texto brinca entre a poesia e a concretude, entre o cotidiano e as palavras que vivem nos sonhos. É quando a presença da atriz se expande em partilha. É, porém, quando ela se afasta em momentos mais dramáticos e encenados que aquela distância provocada em algumas pessoas da plateia se apresenta com mais força. Uma mulher pega o celular, ri sozinha e bufa. O que o espetáculo provocou dentro dela para que seu corpo reagisse dessa maneira? Por mais que nesse momento seja um pouco mais difícil de ouvir, dada a disposição do público, não consigo parar de pensar que o espectador é também cruel com os gritos e sofrimentos da personagem, ainda mais quando ela se apresenta como real. “A todos os homens que nunca me amaram” provoca ao transitar entre o depoimento e a encenação de forma simples. Que as nossas falas sigam, cada vez mais, convocando homens e mulheres para o diálogo, com a inteligência da ternura, e que os desconfortos também nos mostrem caminhos para refletir.
POR ANA CAROLINA MARINHO
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__ Um Homem: Síndrome
Texto, direção e elenco: Nathalia Lorda, Rubens Rewald e Thaís Almeida Prado
Dramamix
SP Escola de Teatro
Poucos projetos em dramaturgia se colocaram tão abertos ao experimentalismo como Um Homem, de Rubens Rewald e Thaís Almeida Prado. A partir de uma dramaturgia em quatro atos curtos, ano a ano, os artistas aproveitaram o Dramamix para erguer e colocar em cena cada parte. Convidando o público ao convívio com o work in progress dessa escrita, o tempo passou e agora o trabalho aponta ao mais próximo de sua conclusão. Ao menos no que se refere ao enredo dramático. Uma mulher muda-se para São Paulo e, enquanto convive com a festa dada pelo homem com quem divide um apartamento reflete sobre como foi chegar ali, ao término depara-se com o corpo de um morto em sua cama. Os atos buscam conduzir o espetáculo por meio do percurso reverso nessa trajetória, levando o espectador e aguardar o próximo momento para decifrar melhor o todo, nessa espécie de perspectiva cinematográfica que pouco se explica se proposital ou casual. São cenas de memória ou recortes de edição. Tanto faz. O efeito tem a mesma eficiência de produzir curiosidade à narrativa e ao desfecho, sobretudo sobre a personagem central.Na edição desse ano, incluiu-se ao projeto Nathalia Lorda. Não mais apresentado como cena em processo, o texto foi pela primeira vez lido integralmente por ela e Thaís sem que fosse acrescida qualquer outra personagem. Desviando do risco de tornar a voz solo em um espelho sobre si mesma, as atrizes conduziram as falas e pensamentos a uma desconstrução plena. Por manterem seus próprios estímulos ao lido, a personagem renasceu dúbia sobretudo em sua lucidez. Em qual das vozes manifesta sua existência passou a ser um jogo muito mais complexo ao espectador. O que se deve, e muito, a fuga de permitir a afirmação da fala na forma de um jogral banal. Não foram poucos os momentos em que uma era a vírgula da outra e que pausas se travestiam como esperas.Nesse novo experimentar o texto, dessa vez duplicado sobre sua própria voz, Rubens encontra um caminho mais próprio ao teatro do que ao cinema, e o que é tão evidente na escrita e nos momentos, agora passa a articular uma teatralidade mais pautada na presença. A narrativa deixa de ser o centro fundamental à existência da personagem para ter na presença o argumento necessário ao deslocamento da ação até o surgimento de uma narrativa. Tanto quanto se discute na contemporaneidade a urgência de deslocarmos o Sujeito a novos modelos de pertencimento histórico, Um Homem: Síndrome parece querer revelar ao Sujeito o seu não pertencimento a história, salvo quando esta existir a partir de suas dinâmicas mais desestruturantes ao ser.Em um processo que leva já alguns anos de trabalho, pesquisa, envolvimento e tentativa, enfim o teatro assume a possibilidade de ser novamente estruturante. Se o cinema tem influenciado e muito a maneira de contar histórias, com seus recursos múltiplos e técnicos, quem sabe o teatro não venha a influenciar o cinema na dimensão do risco processual que lhe é tão próprio? Rubens segue tentando e afirmando, ainda que indiretamente, ser possível sim.
POR RUY FILHO
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__ ContrAção
Texto: Suelen Alencar
Direção: Clodoaldo Arruda e Paulo França
Elenco: Clarinda Castro, Ézero Obathe, Fabiola Karen, Lucas Layon, Jone Sayd, Sebastian Dantas, Suelen Alencar e Wender de Almeida
Dramamix
SP Escola de Teatro
O risco que marca o corpo no chão não deve ser apenas um traço. Ele recorta o corpo do ator, mas de imediato nos conduz a tantos outros corpos que desconhecemos. Ou até conhecemos. Sobretudo, é o corpo ausente, de uma morte programada por um sistema de anulação e desaparecimento do outro que ter tornado o contemporâneo um mistério diante sua animalização. O corpo que falta, o que permanece no entre do espaço desenhado, é mais profunda representação daquilo que nos tornam. Começa assim o espetáculo ContrAção: convidando o público a preencher o chão com os corpos de suas memórias e as memórias de seus corpos. Se a cena inicial já identifica o que será assistido, logo surgem outros corpos. Agora, retirados dos plásticos, escorrem nos braços dos atores transparentes e transparecendo o horror. Mas dessa vez, carregado, existe o encontro, ainda que pelo fim. Os atores ali estão. E os corpos películas são conduzidos, pouco importa para onde; são e isso significa estar próximo a alguém. Já é um movimento revolucionário se dispor a estar ali. E, por mais inesperado que possa parecer a alguns, apenas de não ser, igualmente revolucionário estar no teatro outra vez. Jovens. Todos eles e elas são jovens. O palco pulsa a urgência de quem se quer mais do que um traço do presente ou uma pele descartável. São coletivamente corpos que, unidos, agora são a condição de insurreição ao próprio medo do desaparecimento.Como se espera, por ser próprio da descoberta do teatro, o coletivo se traduz em cenas com palavras de ordem e agrupamentos de forças. Nada há de problema nisso. Nesse instante interessa a dimensão com que esses jovens artistas conferem a esse estado grupal. É nesse sentido que o espetáculo supera o que poderia ser previsível. Propondo cenas sem a preocupação de convencer a plateia, o elenco atribui ao palco a perspectiva de sua rebelião. A contra ação, ora mais contrária do que propositiva, dialoga com a urgência de existir em ato e grito como quem clama pela arte o papel de sua humanidade. Pois trata-se radicalmente disso, do quanto nossa humanização tornou-se ativo biopolítico aos poderes dominantes, como se o corpo fosse um fóssil vivo ou meramente um subproduto da civilização.Corpos são corpos. São presenças. São, cada um, a totalidade do inteiro. Não é possível definir alguém como algo, por algo, com algo. Somos a condição atribuída a todos e é ela que precisa ser compreendida se quisermos algo diferente. A condição da biopolítica, no sentido trazido da necropolítica, expande a possibilidade de espetacularização do humano, portanto, de seu uso, de sua morte. O espetáculo se apropria de sua própria espetacularização para compor um ambiente próprio, uma ambiência que pode mesmo sugerir um estado onírico ao pensamento. Ao não ser literal ou realista, acaba por representar o estado inconsciente de morte imposto ao indivíduo pela necropolítica, que o leva a aceitar e conviver com seu próprio desaparecimento como inevitável.Está na transposição ao palco o que ainda pode ser mais investigado no espetáculo Como representar o coletivo sem caracterizá-lo tão objetivamente, afim de fazê-lo existir em cena com iguais potências simbólicas narrativas? Não há um caminho seguro para isso, somente tentativas. Mas o grupo já mostra o quanto é capazes de tentar e de ser questão de tempo descobrir a grandeza dos desvios durante o trajeto. Grandezas que, quando encontradas, não apenas reinventam o discurso e os argumentos, também, e principalmente, quem somos e a própria maneira de se expressar e fazer existir a arte. Afinal, é importante do que nunca olharmos quais as necropolíticas impõem às artes existirem como são, e isso inclui da poética aos próprios usos dos corpos quando em cena. Um desafio e tanto.
POR RUY FILHO
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__ Laura diz para seu irmão
De Marcio Tito
Direção: Fabrício Castro
Elenco: Cléo de Páris e Felipe Moretti
Dramamix
SP Escola de Teatro
4 anos se passaram e em “Laura diz para o seu irmão” o abandono é a maior presença sentida. O irmão deixa a casa sem aviso prévio, não há despedidas, sua ausência não é pela morte; se fosse, tudo talvez seria mais suave – a ironia cotidiana de preferir a morte que a ausência em vida, semelhante a da mãe que diante do filho desaparecido prefere encontrar seu corpo em decomposição do que viver com a expectativa de que ele possa estar vivo – queremos ter controle sobre a nossa e a vida do outro. Aceitar a partida de quem não quer estar perto e nem anuncia o último dia é dureza profunda e motor para as palavras em crise. Na família de Laura, são três irmãos e é quando um vai embora sem deixar vestígios que a ansiedade toma conta da personagem, exatamente pela irresponsabilidade do irmão em seguir sem olhar para trás, “deixando o futuro demorar”, alargando o buraco no cotidiano de quem fica desejando a revanche, uma vingança premeditada porém inconcreta. Tudo que Laura deseja é que, quando o irmão volte – será que ele voltará? –, a casa tenha mudado, sua vida tenha se alterado, até as desgraças são bem-vindas, assim o encontro e a primeira conversa serão sobre tudo o que ele perdeu, deixou passar, que ele não se importou, como se todo o mal fosse sua culpa e todo o bem fosse a consequência de sua ausência pouco sentida por todos. Você foi e nós seguimos, desejava Laura. O que Laura suspeitava, mas se espanta quando confirma, é que, quando ele voltar a vida, será exatamente igual, como se nesses 4 anos o tempo tivesse passado tão lentamente que os dias ficaram congelados no ponto da partida. Há buraco que pode ser maior? Há dor que pode ser mais profunda que a do ressentido que sonha com a fatalidade – até a si - para que o outro demonstre algum afeto ou compaixão? Laura deseja que a mãe tivesse morrido para que a dor que o irmão fosse sentir fosse ainda maior que a dor que ela sente pela sua ausência. Como em uma tentativa de desviar a dor, de transferir para outro membro, Laura se dilacera, se escancara, revela as feridas de sua alma, o rancor de suas palavras e sofre porque tudo o que ela queria era que essa ausência fosse menos sentida. A segurança do olhar do irmão em seu retorno é desconcertante, antes ele estivesse destruído. “A gente guarda o gesto de um irmão em um lugar bastante estranho”, sem dúvidas. Laura tem tanto a dizer, mas a sua boca é prisão de seu pensamento que segue o fluxo e a violência da água que cai de uma cascata alta. Foram 4 anos rememorados em instantes, Laura pensou com furor, com crueldade, atritando a sinceridade de seus pensamentos com a frustração de seus desejos mais obscuros, mas sua boca foi a prisão inesperada, a concretude de que há um abismo entre a palavra de dentro e a de fora.
POR ANA CAROLINA MARINHO
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__ Engolir a Sombra
De Alex Araújo
Direção: Carolina Erschfeld
Elenco: Fabiana Barbosa, Gabriel Ornelas, Leonardo França, Paulo Eduardo e Marta Jardim
Dramamix
SP Escola de Teatro
Alex Araújo não é um autor simples. Isso é importante ser dito, pois a cena teatral atual está ocupada sobretudo por dramaturgos cujos interesses dialogam com as necessidades e urgências do presente, ou seja, dialéticos e convidativos ao pensamento mais imediatista das reflexões. São consequências de um teatro que luta por existir, mas também por ser objetivos ao entendimento das batalhas quais atuam. E são também escolhas. Alex escolhe o caminho mais tortuoso. Ainda que olhe ao presente e os dilemas de agora, não se preocupa em atribuir à cena qualquer didatismo. Assim, como ocorre em Engolir a Sombra, o espectador terá que se esforçar em encontrar as intersecções simbólicas e aos resíduos decorrentes no esfacelamento dos arquétipos. Traduzindo, não espere dele uma narrativa dramática linear, tampouco personagens com morais unilaterais. É preciso assistí-lo como quem assiste a algo que foge ou se esconde o tempo todo. Um teatro cujo parâmetro de observação não pode se limitar ao que está em cena, mas nas entrelinhas daquilo que por opção não se colocou.Apresentado dessa maneira, parecerá ao público e leitor desse texto algo impossível de ser assistido. Não o é. Sobretudo por circundar aspectos imagéticos e performativos sem disfarces. Então é possível adentrar ao espetáculo pelas figuras em cena, pela sonoridade acumulativa das palavras, pela estetização que amplifica o negro ao redor dos focos. Significa dizer, então, que o teatro de Alex Araujo prescinde de uma direção que o reinvente a cada instante, restabelecendo conexões com a dramaturgia e o espectador, seja pelo quão precisa é a imagem, seja pelo como os performers se apropriam e transformam nos próprios corpos as subjetividades.Em Engolir Sombra uma sequência de personagens e textos oferecem um mergulho ao entendimento da masculinidade. Assim, as personagens femininas são fortes e potencialmente dominadoras, e o feminino se institui como elemento de contraversão ao que se espera do masculino.Ou poderia. O trabalho, ainda em montagem, ora conquista o olhar com boas imagens, ora se perde em ritmos confusos que nada condicionam ou atribuem. Da mesma maneira, as performances, principalmente as faladas, precisam ainda encontrar uma prosódia que afaste o texto do declamatório, afim de torná-lo materialidade em cena e não apenas narração de personagens. De modo que, imagens e performances dissipam a qualidade da proposta e o texto sucumbe a um estado de espera que não supera e pouco surpreende. Há uma confusão evidente entre o que se idealiza e realiza, o que pode, ao tempo, ser resolvido dentro dos ensaios ou das escolhas dramatúrgicas e de encenação, com o cuidado de perceber-se frágil.Engolir a Sombra, por hora, acaba engolido por um excesso de luminosidade em alguns elementos não preparados para vir a tona. Falta, ainda, entregar-se à sua própria escuridão para revelar de fato a infinitude do invisível própria do teatro quando supera a si mesmo.
POR RUY FILHO
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__ Geleiras
Texto: Paula Autran
Direção: Fernanda D´Umbra
Elenco: Fernanda D´Umbra e Pedro Guilherme
Dramamix
SP Escola de Teatro
Com a opção de uma representação as claras, e atores presentes em cumplicidade com o espectador, “Geleiras” se dispõe a mostrar o inverso de seu nome e se derrete em calor, humanidade, vulnerabilidade, poesia e qualidades que hoje nos faltam, na vida e no palco.O texto sai do lugar comum e se propõe a falar de guerra sim, mas também do amor. O protagonismo é dado às pessoas, aos sentimentos que rodeiam suas cabeças e seus corações. Banais, ou não.Vemos nascer a paixão entre dois desconhecidos. Ela já o ama desde sempre, à distância. Ele aprenderá a amá-la intensamente. Depois de um primeiro encontro literalmente desastroso, esse casal se une para atravessar as adversidades de um mundo em pedaços. Quando não se tem mais nada, somos mais fortes juntos.Se não vimos uma guerra global de perto, vemos diariamente outra, tão brutal quanto, que mata aos poucos, lentamente definha a nossa frente, diante de olhos apáticos e corpos inertes.Em tempos de paz, o casal se dissolve. A paixão se esvai com a urgência da guerra e já não se faz mais necessário. Quando recuperamos o que nos foi tomado, acreditamos que somos autossuficientes.A obra discute como desaprendemos a amar em tempos banais, quiçá rotineiros, e como este desejo passa a ser ardente durante tempos de cólera. Tenho minhas dúvidas.Crianças perdem suas vidas, cidadãos perdem seus olhos e o ser humano se perde na incapacidade de empatia.Está tudo errado! Grita com razão a “Fábrica de Animais”. Trilha sonora pertinente ao contexto.Ao final, o sentimento que pulsa dentro de mim é realizado pelos personagens. Vontade de amor.O caminho escolhido da simplicidade no fazer, da verdade na fala e no corpo, da poesia que já se estabelece, pelo simples fato de sermos humanos, encanta e, em meio às geleiras, barreiras e muros que nos dividem, hoje, o sentimento que fica é de esperança.Que fôlego bom.
POR RENATA ADMIRAL
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__ Lamentações
Texto e direção: Fabio Bach
Elenco: Cíntia Crovelt, Luccas Malheiros e Marcella Aguiar
Espetáculo
Satyros Um
Duas mulheres e a expectativa de que um homem seja diferente de todos os outros. Duas mulheres e a não expectativa de que esse homem seja diferente de todos os outros. Duas mulheres, uma criança ainda na barriga e a expectativa ou não de que a vida venha a ser diferente. Duas mulheres, uma criança ainda na barriga e a constatação de que a vida, por mais que pudesse ser diferente, é, agora, apenas realidade imaginada. Duas mulheres, uma criança na barriga e o grito da paternidade ausente, não pela expectativa do abandono, mas pela morte acidental. “Lamentações” constrói-se sob a perspectiva naturalista para tratar a vida de duas garotas de programa que diante da gravidez inesperada de uma delas discutem sobre as possibilidades ou não de o pai assumir o filho. Diante da realidade trágica da maioria das famílias brasileiras, a amiga de Adriana revela sua opinião: nesse país sem pai, filho de puta é abandonado antes mesmo de virar um feto. Não me chame de puta, exclama Adriana. O que há, Adriana, na palavra puta que a dor aparece em desespero? A moralidade não compreende essa como uma realidade possível, assumir o filho com uma mulher de muitos. Acho que é ai que reside a angústia dela: não sendo puta, a possibilidade de não ser abandonada é menor. Pobre Adriana. O abandono não escolhe profissão, mas sei que se aprofunda com ela. O que nos impede de romper com a lógica da posse? O que nos impede de ser sem a moral? O que nos impede de ser tudo? Mas aqui, para romper com a lógica naturalizante, a dramaturgia revela que o pai da criança iria assumi-la, não fosse sua morte prematura. O amigo que presencia o acidente dá a triste notícia às duas mulheres e o que era só um temor torna-se concreto, mas por razões distintas: não há como fugir do abandono, ele está inscrito na pele de Adriana. Adriana revela a fragilidade de sua personagem quando acredita que está no outro a ação necessária para destituí-la de sua condição de puta, quando apenas cabe ao outro decidir pelo abandono, quando é o outro e suas escolhas que definirão o futuro de uma criança. É nesse sentido que brota em mim o desejo de ver narrativas que proponham fugas ao abandono anunciado e esperado. Quem são os homens que ficam? Que rosto têm os homens que não abandonam seus filhos paridos em ventres fora de seu lar? Por que legitimamos cotidianamente estar na decisão do homem os caminhos do nosso futuro e dos nossos filhos? Adriana, o pai do teu filho era um bombeiro, imagem heroificada em nosso imaginário; mas se fosse uma bombeirA, Adriana, o herói teria a imagem de uma mulher hipersexualizada, é o que nos aponta Luccas Malheiros, ator, que, ao fim do espetáculo, convida os espectadores a buscar no Google as palavras “bombeiro” e “bombeira”: a constatação é tão inescrupulosa quanto esperada: ser mulher é ser um corpo objetificado. Como tomar para si, devolver a nós, a capacidade de escolhermos os nossos caminhos?
POR ANA CAROLINA MARINHO
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__ Posso entrar?
De Denio Maués
Direção: Fábio Mráz
Elenco: César Cantão, Danilo Rosa e Guilherme Barros
Dramamix
SP Escola de Teatro
Qual a linha que separa a ação da manutenção do estado das coisas? Sendo possibilidade igual a poder, a ideia é mecanismo, canal. A possibilidade talvez seja o nome da fronteira que divide esses espaços. Pensar sobre algo, desejar e ter a possibilidade pode ser tão ou mais cruel do que realizar? Nesse sentido, um homem com uma arma na mão é a manifestação da possibilidade de matar, seja ela engatilhada em seus dedos ou escondida na gaveta de um quarto. A arma é o instrumento que abriga a possibilidade de morte e o silenciamento do outro. Ela na mão de um homem é o maniqueísmo puro – ou atira ou não, não existe nenhuma outra leitura possível para a imagem, todas as consequências (acertar o alvo, pegar de raspão, não acertar, acabar a bala, etc) são secundárias, atirar ou não é a questão. É sobre o devaneio dessa imagem, sobre a força bruta e maniqueística desse objeto em punho que “Posso entrar?” se adensa. Três homens e a tensão de um gesto. Nesse Brasil militarizado que ostenta a arma de fogo, o poder é experimentado por muitos e desejado por tantos mais e sabemos que não se trata apenas de segurança, de proteção. Trata-se de poder. De conquistar nas mãos a força “divina” que escolhe quem deve viver e sob quais condições. “Posso entrar?” escancara a letalidade do anseio armamentista revelando o quanto é assustador e inescrupuloso um homem armado. Um homem homofóbico com uma arma na mão, diante de um homossexual, se convenciona homem-tudo e portanto salvador da moralidade. Essa faculdade desonesta de fazer algo simplesmente pela vontade é uma das características mais assustadoras do ser humano. Não, você não pode entrar. Mas ele entra, porque sendo tudo ele faz o que quiser. Nesse jogo de poder, os atores transitam entre o dramático e o épico revelando uma tessitura dramatúrgica que prende e alucina. Simplesmente por não ter mais nada o que fazer, o homem mata a gaivota, disse Tchekhov. Imagina um homem armado que dotado de inúmeras certezas se vê diante do inimigo de sua moral e do estado das coisas? O que é preciso para salvarmo-nos dos homens-tudo?
POR ANA CAROLINA MARINHO
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__ Sobre o alto do despenhadeiro
De Rudinei Borges
Direção: Ulyce Eluarió
Elenco: Laura Félix
Dramamix
SP Escola de Teatro
“Sobre o alto do despenhadeiro” é preposição de duplo sentido: ora um desabafo sobre o limite concreto no espaço (o alto de um despenhadeiro), ora uma reflexão existencialista sobre a noção, o sentido. De toda forma, somos assaltados pelo fluxo rápido, oscilante das palavras que dançam no ritmo do vento que sopra lá do alto, no cume, diante do mar. Ventos marítimos, como são estes, sopram com uma densidade diferente, salgada feito o suor que brota da pele da atriz que está em movimento constante de busca, de encontrar a forma para as palavras que são potência e devastidão dentro de si. Palavras que não elaboram um pensamento de agora, mas de anos, palavras que não chegam em conclusões, mas que traduzem imagens vividas, palavras que são fios que se tecem em busca de sentidos, em busca da poesia que não se encontra? Onde está a poesia que procuramos? Olhar nos olhos do despenhadeiro é um convite ambivalente nessa poesia de mente inquieta, basta um passo para os pés não encontrar o chão de outrora, jogar para tornar-se paisagem ou ficar e se manter presença? Avançar o passo para o abismo é como estar diante de um muro de fuzilamento com a arma apontada em sua cabeça, mesmo que não haja arma, nem muro, há sempre você. Você diante do que pode ser o próximo instante. Impossível não divagar sobre estar no alto de um despenhadeiro sem aproximar a força abissal do filme “One more time with feeling”, com o cantor e compositor Nick Cave, que propõe uma experiência sensorial ao mergulhar na história do cantor que perde o seu filho ao cair de um penhasco durante a feitura do cd “Skeleton Tree”. Estar diante do precipício é admitir a queda como possibilidade. “Sobre o alto do despenhadeiro” está em processo de criação e já nos aponta a força que as palavras, diante da escolha sobre a finitude, podem nos causar. Todo dia eu acordo pensando como vai ser o dia. Diante do despenhadeiro, todo dia é preciso escolher para onde dar o próximo passo.
POR ANA CAROLINA MARINHO
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__ O Vidente em: DE CELULARES DO ALÉM TÚMULO – MESA BRANCA DE INTUIÇÃO liberatória de DEFUNTOS REvoltados em seus jazigos
Texto e direção: Breno de Paronis, aconselhado por Marcelo Coelho
Elenco: Breno de Paronis, Marcelo Coelho e André Pereira
Dramamix
SP Escola de Teatro
A quarta parede não existe. O espetáculo talvez seja Brechiniano, talvez performativo. O autor, diretor, ator, vidente deixa claro que pode ser o que quisermos.A conversa é franca, desde o início, e o jogo se estabelece muito rápido. A proposta é: pensarmos em uma pergunta, irmos até o palco, até o vidente, e ele, com apenas um toque nas nossas cabeças irá ler a mente de cada um e responderá aos questionamentos. Não precisamos perguntar em voz alta e o vidente responderá apenas para o consulente. Enquanto isso os demais são convidados a escutarem as vozes do cemitério.Paronis deixa claro que aquilo é uma farsa, que ele não é medium de verdade e que a gente faz o que quiser com a informação que ele der. Que existe um cunho crítico e político por detrás daquela apresentação, mesmo se não parecer. E o mais importante: aqueles que não quiserem participar não serão obrigados, afinal “teatro com interatividade é um saco!”Luzes de velas, uivo do vento, muita fumaça. Um médium responsável pela psicografia de um lado do vidente e do outro o enfermeiro que auxilia durante os “trabalhos”.Aos poucos os espectadores são convidados para a leitura da mente. Ninguém recusa. Todos embarcam na proposta.No ranger das tumbas vozes de Maria Antonieta (Rainha da França), Hannah Arendt (Filósofa alemã de origem judia), Marco Aurélio (Imperador Romano), Inácio de Loyola (Fundador da Companhia de Jesus) e Adolf Hitler.Chega a minha vez. O vidente coloca a mão sobre a minha cabeça, eu penso em algo que quero uma resposta e ele profetiza palavras de esperança, de possibilidades, de aconchego. Após a previsão, me é entregue a segunda parte da profecia, desta vez psicografada. Volto contente para o meu lugar.E assim acontece com os demais que estão presentes. Alguns dão risada durante a sessão, outros saem pensativos, mas, todos deixam o palco com um sorriso no rosto.Pastores se reviram na tumba com seus discursos homofóbicos, discutem em nome de Deus, testemunhos são ouvidos e acusações são feitas em relação ao assédio religioso.Neste momento caótico em que o mundo vive, com tanta falta de amor e gentileza, no desespero de acreditar em algo, ouvir qualquer palavra de esperança, mesmo que baseada em ilusões, pode ser reconfortante. E após nos contentarmos com estas migalhas de atenção a farsa é revelada. Para riso do público, o vidente é acusado de ser um farsante e de abusar da fé das pessoas.Se os espectadores compreendem a questão política do além túmulo, a crítica estabelecida, a sensação de mesmice da nossa civilização que, geração pós geração, parece andar para trás, dando a impressão de que não somos capazes de evolução, uma vez que discursos de outrora não são diferentes destes do tempo presente... não dá para saber.O que sabemos é que o autor, inteligente, ganhou o público no primeiro segundo, apenas com honestidade.A brincadeira foi ótima e se o conselho serviu, foi sorte.No cemitério 19h, diz a voz do Brasil.
POR RENATA ADMIRAL
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__ Coincidente
De Daniel Veiga
Elenco: Lívia Matuti e Daniel Veiga
Dramamix
SP Escola de Teatro
Quem somos quando perdemos a perspectiva de quem seria o outro? Diante o paradoxo quase incapaz de ser respondido, Daniel Veiga elabora um jogo de ausências que determinam ser este o estado mais complexo do ser, do íntimo ao real. Uma ambiência de guerra ou sugestionado a existir como tal impõe aos personagens o isolamento mais profundo. E é esse estado limitado a uma existência única, não mais compartilhada e ampliada, que os leva à incapacidade do indivíduo perceber seja quem for. O outro, então, é a dimensão mais cruel da própria inexistência ou do temor de confirmar-se vivo. Por isso o texto e direção acertam em insistir ao reafirmar tais códigos. Palavras que, quase sempre, são tentativas de perguntas; respostas oferecidas como busca da materialização daquele que a traz. Se perguntar é duvidar do instante, responder é duvidar do existir. Na soma de ambas as dúvidas manifesta a potência de um encontro que não mais se faz pela presença, e sim pela possibilidade do encontro estar em pleno acontecimento.Duas vozes intercaladas em um rádio amador, dois corpos distantes e em situações distintas, duas vidas que coexistem no instante, dois lugares que, mesmo abstratos, se comprovam possibilidades. A mulher soldado morre aos poucos e pede ajuda. O homem isolado em sua casa recorre à desconfiança como proteção. Afinal, soldados são quem são, ou deveriam ser quem imaginamos serem. Solitário, ao contrário, são todos os demais, e generalizam sobre o todo uma espécie desprovida de sentido ou importância. Ao inverter a lógica comum, Daniel provoca o espectador a duvidar de seu entendimento prévio de ambos, e com isso reinventa a dimensão humana naquilo que se revelará ser a possibilidade de um passado e do amor. Por não se concluir, a resposta é dada ao público que, agora, precisará igualmente se presentificar ao texto afim de lhe confirmar ou recusar.Separados, os atores se confrontam entre o vazio e voz microfonada de um lado e o real e a crueza da presença do outro. Soldado e homem, respectivamente. E, novamente subvertendo as expectativas, é diante a cena mais realista que o teatro parece mais plausível enquanto acontecimento. No esvaziamento do soldado, na voz artificializada, na luz desenhada em penumbra e fria, a mulher parece menos teatral e real, e por isso mesmo mais própria ao simbólico. O que Coincidente produz é a sensação de mesmo o teatro só ser acessado no contemporâneo quando por ele nos aproximamos de certo reconhecimento de realidade. Até quando a realidade é por si a construção imaginativa de sua distopia humana. Ou, talvez, de maneira mais dolorida, seria a própria realidade a teatralização de uma distopia que elevou o humano a ser apenas um traço da humanidade que estamos tão próximos de perder.
POR RUY FILHO
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__ DesolaDor – Artaud em Decomposição
Texto e direção: Gabriela Mellão
Elenco: Clovys Tôrres
Dramamix
SP Escola de Teatro
O corpo. A forma na penumbra. A transformação. O vir a ser.As cartas trocadas entre Artaud e seu médico no hospício são a base para este texto conciso, coeso e de extrema relevância para se repensar o ser humano, o ser artista e a sociedade que nos sufoca e se alimenta do nosso medo, dor, desespero e desesperança.Artaud é um dos meus personagens preferidos da história da arte. Coincidentemente me aproximo dos artistas cuja loucura foi diagnosticada e reafirmada pelos comuns, mas, perante os sensíveis de alma é enxergada de forma magnânima.Tanto o é, que Artaud é citado até hoje, mais de 70 anos pós-morte. Assim, como tantos outros, cuja humanidade fora classificada como insanidade.Gabriela Mellão nos convida, em sua montagem, a vislumbrar este ser, este corpo em decomposição, com todas as marcas dos homens e do tempo sobre ele. O cenário é o caminho do poeta até o fim de sua vida. Caminho. Movimento. Corpo. A plasticidade do movimento no corpo do ator-Artaud.A discussão do texto é atemporal. Tudo está no tempo presente. Artaud, como todos nós, é fruto da criação, do ambiente, das pessoas. É ele mesmo, é pai, mãe, filho, o outro, é você leitor, sou eu, que agora escrevo.A vulnerabilidade deste homem está diretamente relacionada à sua escolha de sentir tudo e todos.Artaud sai da caverna, do ventre de sua mãe, para nascer, e não apenas viver, mas, sim, existir.No corpo do ator, o menino, quando se torna homem, “na tentativa de sentir, não recusa o sofrimento”, e ao longo da vida se torna um velho mumificado e paralisado, não somente pelo tempo, não por causa de sua morte. Paralisado por um sociedade arcaica. Por métodos de tratamentos, muito duvidosos, com eletrochoque. Carne, dente, pele. Suas camadas feitas em pedaços. Quanto mais sofre o poeta, mais sente, mais se entrega ao sentir. Quanto mais se despe, mais suscetível ao exterior está. Na sua fala, fragmentos da vida, memória da solidão. Vazio.Êxtase confundido com loucura e à mercê de punição.Como é de habitual, o ser humano, que cria e destrói, se coloca como inquisidor no direito de julgar, avaliar, impor ao outro a cartilha do que pensar, como pensar, do que gostar, quem amar, quem ser. Se desde os primórdios o homem se dá ao direito de tirar a VIDA do outro, penso que todas estas imposições nem pareçam inconvenientes à estes “salvadores do mundo”.“Não incomode mais Artaud. Vá para o túmulo”.Os lúcidos fenecendo e adoecendo perante as atrocidades cotidianas. Enquanto os ignorantes governam e ditam as regras. O mundo é o abismo da alma, se o mundo parece sem salvação, será que a alma resiste?O Artaud de hoje é sinônimo de resistência, em seu túmulo e fora dele.
POR RENATA ADMIRAL
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__ Ensaio aberto sobre Jesus Cristo
Direção: Guilherme Andrade
Texto e elenco: Amanda Pickler, Bruno de Paula, Guilherme Andrade, Larissa Brito e Nicole Tacques
Espetáculo
SP Escola de Teatro
A complexidade do mundo impede, muitas vezes, que as coisas sejam percebidas a partir delas mesmas, e não é diferente no teatro. Preconceitos, julgamentos, receios são partes dos instrumentos que cegam e levam ao distanciamento e recusa, pois dialogam com violências já instauradas no inconsciente construídas por outros que, por interesses próprios, querem exatamente isso. Também não é diferente no mundo do teatro. Porque é do homem a condição de julgamento e defesa, e porque a sociedade desenha limites e correções todo o tempo. Dito isso, é preciso se permitir experienciar as possibilidades a partir de como se colocam abertas aos seus próprios desejos.A presença de Cristo na dramaturgia vem de longe, ainda na Idade Média, quando o teatro recupera sua presença social a partir do uso em missas e outras festividades católicas. Se no primeiro instante, cabia às representações o divino apenas, fora necessário dialogar com o fiel algo mais próximo, ou seja, o próprio humano como dimensão do divino. Entre a encenação da vida dos Santos, profetas e homens comuns, a vida de Cristo se destacou em autos próprios que destacassem suas passagens bíblicas, pelos quais os ensinamentos, as palavras e os ideais poderiam completar os sermões, então de forma lúdica e estética. Nascia nesse movimento, nada simples e imediato, os princípios que norteariam o drama moderno, pelo qual o indivíduo é a centralidade da complexidade e não somente o espectro ao descortinar do divino trágico. Significa, por conseguinte, que o homem é tão próprio a cena quanto sua divindade, e desdobrar aos detalhes mais íntimos da vida de Jesus se tornou premissa narrativa e dramática, ou seja dramatúrgica.Com o tempo, Cristo se fundiu em personagens múltiplos ao ser o epicentro de uma cosmogonia ao homem moderno, pelo qual outros personagens bíblicos viriam ocupar o palco. Em outras palavras, aqueles incluídos na narrativa se justificariam pela centralidade de Jesus modificando a própria percepção sobre o homem que fora e existiu.Dialogar com séculos de como representa-lo implica em construir novas proposições cênicas também. Sendo assim, a inclusão participativa do espectador passou a ser o mecanismo de aproximação ao personagem, invertendo a presença do público em seu papel histórico e religioso de observador passivo. Retira-se, assim, o contexto evangelizador maior para permitir pelo encontro a experienciação de seu sentir. A ritualização, agora, precisa ser teatral e não ecumênica. E é exatamente por essa escolha que o público convidado a sentar na plateia em círculo, beber o vinho, comer o bolo e cantar.No ensaio apresentado, algumas cenas deram a dimensão da pesquisa e quais os caminhos escolhidos pelos artistas. Na ressureição de Lázaro, o ponto de vista bíblico é ampliado pelas versões complementares dos que estavam presentes, inclusive dele próprio. A dramaturgia, então, configura maior tridimensionalidade ao acontecimento ao tempo em que se utiliza do imaginativo para recuperar as próprias sensações sobre o acontecimento. Em outra cena, Maria Madalena é trazida amplificada em sua própria voz, numa perspectiva não linearizada ou dogmatizada pelos aspectos masculinos que a narram secundária no Livro. De tal maneira que é possível, inclusive, problematizarmos a condição histórica de sua prostituição e sua força feminina em dimensões revolucionárias. Dessa maneira, a peça se propõe também crítica aos limites encontrados no próprio material original.Convidando o público a um dialogo mais íntimo, manifestando-se suas próprias experiências ou questões sobre fé, Deus, cristandade e muito mais, o elenco provoca o encontro com a delicadeza necessária para que aconteça o envolvimento, e sabe bem articular o retorno ao espetáculo ao prever nessa participação os materiais que lhe permitirão seguir. Sem pressa, sem pressão, sem exageros. Deixando que os atores e atrizes se apropriem de volta do centro do círculo ressignificando-o como espaço destinado ao teatro.Com técnica e gentileza, Ensaio sobre Jesus Cristo não nega sua intenção de ser sobretudo um encontro com Cristo, tendo a experiência do teatro como trajeto possível. Então não há verdadeiramente o que ali ser recusado. O título é o próprio convite. Entra na sala aquele que o reconhece ou quer conhece-lo. Ou, ainda, quem se interessar em experienciar algo tão longínquo a suas próprias certas, ou outras possibilidade ao teatro. Não importa. Ao fim, existe uma dramaturgia bem elaborada, performers interessantes, estruturas cênicas que ainda precisam ser mais profundadas em estética e poética fugindo dos exercícios e jogos teatrais que lhe conferem certa ingenuidade no uso da linguagem, mas que já mostram bons caminhos e escolhas.Nos últimos instantes, notícias são lidas em uma aparente coleção aleatória dos acontecimentos recentes incluindo críticas diversas inclusive políticas. Algo que pode ser inesperado a quem julga o espetáculo apenas por seu título. Há um espetáculo feito por quem respeita o teatro e busca dialogar com o real em seus dilemas e conflitos, erros e absurdos. E, ateu ou não, cristão ou não, o importante é o teatro existir como potência de encontro humano que sempre fora e é.
POR RUY FILHO
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