Festival de Curitiba 2019
Acompanhe aqui as resenhas de Ruy Filho sobre o festival.
__Celui qui tombe
De Yoann Bourgeois, França
Teatro Guaira - sala Guairão
A produção contemporânea nos convida, cada vez mais, a olharmos os espetáculos para além das categorias definidas, então importa menos se teatro, dança, circo ou performance. É preciso estar aberto ao que se propõe e não apenas ao que se supõe ser. A partir dessa perspectiva, os festivais se abrem aos encontros e interlocuções entre as diversas linguagens cênicas e performativas instituindo experiências mais inquietas ao espectador, quando não condicionado a uma única leitura. Assim fez o espetáculo de abertura no 28o Festival de Teatro de Curitiba. Aquele que Cai, de Yoann Bourgeois, pouco importando o enquadramento. O imenso teatro lotado aplaudiu com entusiasmo pouco comum, sobretudo se nos atentarmos à condição do quão subjetivas são as percepções oferecidas em cada instante ou cena no espetáculo. Entendido circense, o trabalho se dedica a reinventar a linguagem, a partir de outras possibilidade de articulação entre corpos e riscos. O contexto acrobático fundamenta no equilíbrio sua capacidade de dialogar com as especificidades impostas pela imensa plataforma, ora suspensa, ora em movimento circular, ora posta vertical. Um circo que, ao contrário do que se entende comumente, atribui a presença humana como complementar ao discurso estético-narrativo. Se lido dança, porém, algo lhe falta na elaboração coreográfica; alguns momentos são simples ao possível e exigiriam maior investigação. Ainda assim, a condição dada aos dançarinos atrai o espectador que assiste o orquestramento desse existir coreográfico no interior do construído espaço plataforma-luminosidade. Escolhe-se um começo mais popular, sobretudo pelas músicas reconhecíveis que contextualizam as imagens. Superado esse instante, o espetáculo verticaliza em uma potência singular. É quando a obra se justifica potente e especial, e determina um público menos participante e mais hipnotizado e cúmplice. O silêncio ganha a plateia. As vozes dos performers surgem em canto belo e onírico. O espetáculo poderia ser somente por esse caminho. Todavia, é exatamente a escolha narrativa de aproximação com o público que o torna mais circense e tão relevante como coreografia. E tudo bem, pois o faz bem. Dentre as dezenas de leituras possíveis sobre o corpo em queda, da bíblica à social, do que significa cair, do filosófico ao psicanalítico, o importante é permitir que a subjetividade pretendida se estenda às interpretações particulares. Aquele que cai quer, antes de mais nada, atingir a profundidade de cada um, sem discursar sobre, sem solucionar, sem traduzir demais, a partir do e para o um. Certo mesmo é que, ao fim, por centenas de descobertas e sensações, o público, não tão acostumado ao teatro contemporâneo, ao circo novo, às coreografias que rompem as fronteiras da linguagem, demonstrou viver um estado de encantamento inesperado e transformador. O quê de mais urgente, hoje, do que construir afetos e sensibilizações poéticas, em mundo que observa despencarem seus valores, suas lógicas, suas conquistas e a própria estrutura civilizatória tal qual conhecemos? O Festival de Curitiba, novamente, assim como nas edições mais recentes, começa aberto a todos. E não abre exceções ao seu desejo de incluir. E foi só o primeiro dia.
foto Lina Sumizono
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__ Chão de Pequenos
De Companhia Negra de Teatro, Minas Gerais
Memorial de Curitiba, Sala Londrina
Delicadamente, os dois performers ocupam o palco. Não há pressa em revelarem-se ou quem por eles revelarão. Primeiro chegam-nos suas silhuetas ou sugestões. E a demora para encontrarmos seus corpos diz muito sobre o que trarão consigo. O que poderia se limitar a ser somente uma estratégia para o início, amplia-se a cada instante do espetáculo. Nos seus corpos surgem quase que naturalmente partes daquilo que identificamos como nossas especificidades enquanto povo. Um gesto próprio do futebol, um brincar que se amplia à capoeira, um divertir-se que se faz passinho. Nesse transferir ao próprio corpo, os artistas descrevem, para além de quem somos, também como chegamos aqui, o que nos tornamos. Um corpo negro, mesmo quando branco, de uma negritude que está em qualquer um, por mais que se ignore ou não queira. Acima de tudo, um corpo invisível, cuja cultura é aceita, mas negado em presença. Estão nas ruas com suas balas e malabares, nas calçadas esquecidos, vendendo água nos trens e sinais, projetados em nossos medos, preconceitos, violências, racismos, chacinas. Por isso o negro em nossos corpos é recusado: quem quer ser reconhecido assim? A negritude, não mais a cor, agora estado ao ser, é para qualquer um que não se aceita próximo ou igual. Só que é também do preto. E, duplamente, o preto é resumido a preto e negro com um propósito óbvio: se a contraposição naturalizada à negritude pode ter seu preconceito minimamente combatido, na pretitude permanece inabalável. O branco negro pode até escapar; ao preto negro não há qualquer oportunidade disso. Salvo mesmos apenas os brancos brancos. Mesmo as margens precisam de argumentos para se sustentarem, e sempre haverá aquele que nem nela é bem-vindo. Isso, logo aqui, onde a minoria é maioria, mas insistentemente denominada por menor como instrumento ao contínuo processo de sua invisibilização. São quase infinitos os desdobramentos, as questões, os horrores. E a sociedade segue segura, satisfeita, negando, ignorando e eliminando. Inclusive aos seus jovens, suas crianças. Ou pior, a possibilidade de serem pertencentes, seja à sociedade, seja à família. Nos abrigos existem escondidos e ali crescem até não caberem mais e terem de ir. Para onde?Chão de Pequenos olha a eles. E o que poderia ser somente uma representação assume o contexto de realidade possível pelos próprios corpos dos performers e as narrativas idealizadas com igual julgamento sobre eles. Ramon Brant e Felipe Soares trazem imediatamente as complexidades que determinam tais meninos e corpos sem serem literais demais, sem serem acusativos; são sobretudo convites oferecidos aos espectadores com generosidade singular. O que é mais real, se não a própria necessidade de ficcionalizar a realidade para que esta possa ser percebida? O espetáculo aceita-se assim e como tal faz da exposição do invisível uma experiência poética sobre o mundo, esse outro mundo, que ora se serve à liberdade lúdica frente os modelos de como existirmos, ora é dolorido demais para acreditarmos. Só que é real e está exposto em qualquer canto ignorado. As crianças invisíveis à espera da adoção, de alguém, sequer sabem quem são, pois foram condenadas ao quê são. Felipe e Ramon exploram com delicadeza a fuga desses meninos aos sonhos, às imaginações, aos desejos, algumas poucas lembranças; emprestam-se e se tornam, em certa medida, o alguém delas por alguns minutos. Não é preciso ser específico ao outro, apenas existir ao outro, para que este se reconheça de alguma forma. O espetáculo é, por fim, assustadora e profundamente humano, de um jeito raramente proposto no teatro brasileiro recente, e, quanto mais assim se realiza, mais evidencia nossa própria desumanidade. Falar com os artistas ao final foi difícil, dado o nó na garganta e peito, o choro surgindo, a dor se convertendo em profundo estado de solidão. Ainda guardo a tristeza do menino preto que permanece no abrigo, a solidão do branco em seu novo quarto. E talvez nunca deixe de ter comigo tais emoções. O espetáculo me revelou ser eu o invisível, diante de um mundo ao qual me escondo, me embranqueço ainda mais e me protejo. Mundo esse mais verdadeiro, real e sincero do que qualquer sentimento que eu possa descobrir apenas agora. Minha melancolia não é nada diante os olhos de quem só tem os olhos para sentir, esperar e ser. Chão de Pequenos é arrebatador e acolhedor na mesma proporção e muito também por seus dois artistas excepcionais em cena. E que merece ter por palco todos os espaços capazes de ainda nos oferecer possibilidades de seremos novamente humanos. Inclusive os teatros.
foto Lucas Brito
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Ruy Filho e Patrícia Cividanes viajam a convite do festival.