L.A Dance Project
De Benjamin Millepied
Teatro Alfa, SP
As quatro coreografias são capazes de devolver ao público algo há muito perdido no processo evolutivo do capitalismo - a capacidade de contemplação. Antônio Cândido via como uma das maiores agressões ao humano a frase " tempo é dinheiro". Afinal, quando o tempo estabelece a possibilidade da conquista de um valor financeiro e quando o tempo deixa de ser o tecido aonde se pode bordar experiências, como é que alguém pode ter a coragem de "perder" este valioso bem? Investir seu tempo justamente em perder tempo é uma liberdade que o capital "desinventou". Contemplar é deixar que o raciocínio prático diga adeus e deixe que a assimilação instintiva tome o comando, que o instinto protagonize mente e coração e assim algo receba uma especial faxina dentro de nós. O belo visita a nossa idiossincrasia e reorganiza coisas sem nome. Sem tempo ou objetivo. Contemplar é deixar-se seguir dentro da vida e com ela. Contemplar o belo estabelece uma troca muda entre nós e o outro, entre o tangível e o estético. Entre a possibilidade e a vida. Eu ofereço meu instante de vida e a vida devolve o que ela quiser, ou apenas me rouba, ou doa-me um prejuízo que me trará todo o lucro através desta narrativa que se pretende mais acontecimento do que trajetória com sentido prático. Quando corpos flutuam e o ar revela ter sim uma íntegra densidade, nós, estes que se movem com a vulgaridade da vida concreta, podemos apenas imaginar que vida e sonho, possibilidade e amor, no corpo dos bailarinos, por ordem da sagrada humanidade, encontram um abrigo em comum. Eurídice e suas infinitas possibilidades de ser. Os minutos revelam o quanto estamos ainda aqui vivendo dias repetidos, e, tragicamente também revelam como “criar” e “transformar” tem sido tabus nas sociedades. Neste ritmo, confirmando o íntimo da fábula, homens eternamente precisarão conferir se determinada mulher de fato quererá seguir viagem acompanhada de seus defeitos e qualidades masculinos, e assim colocarão sempre tudo à perder - #somostodosorfeu. As estátuas de sal seguirão nascendo e renascendo quando a renovação não se estabelecer como regra do presente. Naquele palco, não fosse ter de fato acontecido tudo o que assistimos, as cenas poderiam desaparecer no ar. As situações não insistem em acontecer, acontecem ou não, ou sim, com maior ou menor intensidade conforme a apreensão de cada um. Pode aquele ter vislumbrado uma eterna dança romântica. Ou aquela ter encontrado na dança uma metáfora ao descarrilar de amores que se vão tão rápidos quanto vieram. Pouco importará aos que viram ou deixaram de ver qualquer outra coisa. Se o corpo é capaz de dobrar assim a realidade, e fazer do mundo esta maravilhosa beleza projetada na física, na música e diante de meus olhos, então é disso que devemos falar com ardor infinito. De repente, como disse meu amigo, tudo passou à valer menos, afinal, aqueles pés estavam ali e pisavam daquele jeito. Nada. E nenhuma política ou guerra poderia pensar-se importante diante da energia daqueles artistas focados em tocar o belo. Toda a transgressão da dança contra a matéria hegemônica da realidade coletiva, ainda em vocação de caça aos cotidianos, queria muito mais do que executar passos, queria sim, e desta sensação não há o que me liberte, libertar as mulheres e os homens, libertar todos os animais humanos ou não. Libertar? Mas de quem? De qual instância? Isso, esse segredo, essa polifonia heróica, estará eternamente guardada nos instantes que se passaram. Contemplar é isto. Cravar num passado impossível todas as possibilidades de um futuro desejável.
foto Laurent-Philippe