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Madalena Bêbada de Blues

Texto e Direção: Léo Lama

Teatro Sérgio Cardoso, SP

Se Paulo Vanzolini, o cientista, criou um eu-lírico para fundar a mais notável ronda da música popular brasileira, Léo Lama, o dramaturgo místico, sorveu o procedimento e colocou-se em absoluto risco. Então, aquilo que na mpb nos parece natural ao canto, no teatro, atualmente, nos parece uma ruptura radical. Ou, na pior e mais rasteira das hipóteses, o extermínio do "lugar de fala". Esquecem que a obra se faz nos corpos, e os corpos ali carregam o lugar de fala, dão lugar à fala e, finalmente, através da poética da interpretação: Falam.O século XXI não convidou Madalena Bêbada de Blues, mas, com rara ousadia e pertinente consciência, como uma abusada proposta se interpondo às mais recentes tradições dos movimentos sociais, a Madalena de Léo, perdida do politicamente medíocre, acontece guardando em si um ímpeto - Léo e elenco querem mais. Querem poder poder (em sentido ético e estético).A voz do autor organiza o tempo da cena e, organizando três animas, a cena evoca um tempo de fêmeas em combate. Nem por isso deixamos de ver a sombra de tudo aquilo o que não é. Não é um romance. Não é um dispositivo para narrar um paralelo. Não é uma metáfora. Uma parábola. Não é um jogo, uma cena, um clima. É tudo isto ao mesmo tempo. Cada uma das nuances comete outra camada. E este jogo de embaralhar as previsões, borra as linhas da tradição, calça tons contemporâneos e ainda assim oferece homenagens ao teatro clássico, enobrece e enaltece as divas e as palavras.E outra camada é outro eixo. Outro posto aos viventes, outra textura para a vida. É provado que os sensíveis, aqueles que são tocados pelo toque do mundo, repetidamente resultam em deprimidos, perdidos, bêbados e infelizes. E os outros, aqueles duros na queda, aqueles contracheque e boleto, esses, resistem melhor ao sistema antropofágico da vida capitalista, da vida pouco simbólica e muito prática. Então, tudo aquilo que se faz no vento, o teatro, os encontros, os sonhos, esse está sempre fatalmente relegado ao esquecimento, aos banheiros perdidos em bares esquecidos. Não fosse por um ou outro desajustado, essas artes do coração poderiam não mais figurar entre nós. Cabe aos sensíveis cuidar dos pedaços da poesia. Neste caso, sem com isto eleger as mulheres, resta à anima aplaudir estes milagrosos e tristes pedaços de poesia. Uma anima não é uma mulher, é tudo que há de mulher em nós.A peça, excluindo gênero, sociedade e simbolismos possíveis, trata da desesperada preservação daquilo que hoje respira com a ajuda de aparelhos - a vocação, o ímpeto pelo belo, o sonho despautado da realidade, o nosso tino de brava gente. Em um movimento não-brechtiano, damos um encontrão em Bertold.A encenação reflete este fio de vida. Um fio de espetáculo autoriza as cenas, um intencional fio de sedução permite-se irromper no mundo e moderadamente o teatro evolui sua presença conforme acontece. Como se durante tempos a cena tivesse sofrido rejeição, e só agora tivesse reencontrado seu caminho, uma luz fria não se constrange em ser ao lado de um tecido simples. O que nos resta são três instâncias, excelentes atrizes, uma roda e o conjunto de sujeitos, verbos, predicados e artigos. Este pouco, propositadamente evidencia muito. Nos faz refletir para onde nos carrega a fumaça e a luz, os cenários e os figurinos. Léo se mostra capaz de elaborar uma pergunta que equivale ao procedimento - Qual teatro é o nosso teatro? O que estamos fazendo aqui? Melhor ou pior, maior ou menor, vivo ou morto?Madalena, a sonhadora mais jovem, é feita de uma matéria nobre, apesar de regida, talvez, por forças do ventre. Esta é uma Madalena da nobreza, do coração e do afeto, dos sonhos e dos projetos, da retomada. Esta, reunindo as possibilidades da juventude, também funciona como síntese para a encenação. Ela, a sonhadora que vai se estabacar contra a realidade, guarda em si aquele pouco que aquece o coração de quem assiste. Tendo esta jovem Madalena como exemplo, buscamos na gente um pouco daquela inocência que ainda assim mostra-se feroz. Como uma leoa que ataca para manter-se fofa. Sua serenidade, sua quase apatia pela realidade e devoção pela utopia nos torna possíveis remediadores de nossa própria austeridade contra o intangível.Noutro ponto, outras mulheres evidenciam o ridículo que seria ter um sonho. Só quem já sonhou e acordou urinado é que sabe que o melhor remédio é manter-se acordado e não beber água nunca mais. A Madalena jovem, fosse uma estadunidense moderna, estaria vivendo o paradoxo do suicídio causado por pulsão de vida. Este paradoxo apresentasse como expectativa do delírio, ou seja, o desejo de encontrar a morte por ter sentido energia vital demais. E esta energia não cabe no mundo, não experimenta adequar-se ao regramento e oportunamente - transgride.Léo exclui o teatro do teatro e revela aqui uma importante interação com a prática do cotidiano. Minimiza os efeitos e dilata algo inominável. Este algo é o que faz o teatro fluir. Uma sala é capaz de comportar teatro, uma roda, uma fogueira, um momento esquivado da cidade. Corre o risco de produzir um teatro que, desadequado das propostas do mercado, poderá passar reto nas redações e talvez nunca atinja grande público. Se isto os ferir, não entenderam seu lugar no mundo. Mas, entenderam. Não sairão feridos. Sabem que propõe um resistente teatro catacúmbico. Partem de um lugar altamente experimental e passam por particularidades premeditadas.Na astronomia, as três Marias podem ser também reis, e figuram no lugar onde Zeus depositou um caçador que morto tornou-se estrela. Então, estas caçadoras, vivas, tornaram-se estrelas na vida, brilham enquanto a noite se adensa e sofrem de uma intima relação com o deus maior. Ninguém jamais saiu impune da convivência com os grandes projetos ou com as grandes narrativas. Elas sofrem, bebem este sofrimento e terminam ainda vivas, ainda querendo, sorvendo o que resta da vida. Talvez este homem seja o que menos importa. Afinal, são elas que figuram na cena e que nos fazem crer na existência deste outro. Talvez ele não exista. E elas estejam presas em um eterno jogo de inventar ficções para que a vida siga adiante (ou para dentro).

foto Dionisius Amendola

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