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FIAC BAHIA - 2017


Acompanhe aqui as resenhas de Ruy Filho sobre o festival.

__Eu é outro: ensaio sobre fronteiras

De COATO Coletivo

Teatro Gregório de Matos, Salvador

Pensar o outro é pensar a si. Assusta. Quem está disponível a confrontar a própria verdade? Ao mesmo tempo, olhar a si é reconhecer o outro. Intimida. Quem está disposto a sustentar outra verdade que não a própria? A complexidade dessa dialética, de ir e vir, o espetáculo Eu é Outro busca de forma poética e particular construindo uma dramaturgia rizomática, tramaturgia, tal como nomeia, para elaborar sobreposições simbólicas que caberão ao espectador reunir e construir sentidos. Entre vídeos, presenças, vídeos que se apropriam das próprias presenças, fala e canto, gesto e movimento, o vocabulário cresce a cada instante que não cabe ser simplificado como sendo apenas outra cena. Há a ingenuidade bela daqueles, ainda jovens, que persistem com ideais e vontades de futuro, mesmo que, ao olharem o entorno, tanto nee seja dor, solidão, abandono e decepção. Como o corpo do menino refugiado na praia, como a fala cercada pelo próprio grito projetado ao rosto exposto de quem questiona, como o sussurro de perguntas ao escuro de nossos olhos, enquanto invade nossos ouvidos. A ingenuidade, então, é mesmo ingênua, ou estamos nós, envelhecidos, desprovidos da capacidade de trazer perguntas ao mundo, devotados a nossas verdades tão estáveis? O quanto nossas certeza implodem a presença do outro como realidade? Esse trabalho do Coato vem do encontro dos artistas baianos com Rubens Velloso e parte desse percurso foi apresentado em São Paulo. De lá pra cá, nesses pouco mais de seis meses, assumiu face própria, expandiu os criadores e trouxe singularidades. Assim, o que um dia foi uma performatividade sobre o Eu, mergulhando nas diversas camadas surgidas; agora faz do Eu um estado performático, invertendo a abordagem para algo mais pessoal, ao qual cabe as individualidades criativas e, sobretudo, compondo um corpo único formado por partes que se esbarram. Por isso ganha em assinatura, ganha espontaneidade de escolhas, ainda que assumam generosamente manter a influência especial de Rubens. Um encontro que só cresce, com amadurecimento em velocidade incomum. O Coato escapa aos estereótipos previsíveis de sua geração, desde como narrar, como se apresentar, como tecer a tramaturgia. As descobertas fundamentais já estão aí. É tempo para que essxs garotxs façam dos palcos acontecimentos radicalmente pessoais. O que produz certa esperança ao futuro das experiências teatrais por aqui. Um ótimo início da cena baiana no Fiac. Com o Coato, o festival continua provando sua importância e a importância de ter como valores ousadia e provocação.

foto Diney Araújo

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__Chipping

De Anna Konjetzky

Teatro Vila Velha, Salvador

A performatividade sustenta em seu próprio artifício os instrumentais necessários para elaborar contextos cênicos. Basta, então, estar em cena e a qualificação do entorno se potencializa como eventual linguagem. No entanto, o cênico, ao ser atribuído à dança, necessita incluir outros tantos aspectos para se assumir diferente. Dançar não é exatamente performar, e as distâncias, ainda que maiores ou menores, determinam os interesses de seu criador. Em Chipping, o que parece um exercício performativo alicerçado por um único estímulo narrativo – a saber, a relação entre como se portar em um ambiente em ação, e ter na reação a busca por fortalecer a própria independência e personalidade -, realiza-se mais claramente como dança. Muda muito perceber o espetáculo por tal viés. Significa inclui-lo ao repertório em construção no contemporâneo, tendo ainda a historiografia da dança como comparativo e argumento. É nesse prisma que o espetáculo sofre algumas perdas e consequências. A produção em dança, especificamente europeia, superou a performatividade como estado de narração, e desde então a auto-narrativa fez-se a verborragia estrutural ao corpo. Dança-se aquilo que se é, e menos a ficção qual se quer promover. Evidentemente, isso não é uma regra a ser seguida. Mas, ainda que não se opte por tal dinâmica, esse outro ângulo de acesso propiciou coreografias menos tecnicistas e mais exibicionistas, com todos os seus acertos e problemas. Chipping propõe um caminho independente e acaba, em muitos instantes, lembrando espetáculos de décadas passadas, aos quais os recursos em vídeo eram investigados como luminosidade do palco e os cenários compunham espaços de abstrações, espetáculos cujo intuito era elaborar contextos cênicos a princípios da arte instalação. Entre a performatividade da dança realizada por Sahra Huby, o contexto sugestivo de uma urbanidade invasiva, impositiva, perigosa e desafiadora da qual não escapa, e a estrutura cênica já tão experimentada outrora, surge um espetáculo que confunde ideia e realização como se estivessem em momentos distintos ou se sobrepusessem por acaso. Anna Konjetzky possui muitos interesses e tenta associá-los em um único acontecimento. Talvez sejam muitos. E o espetáculo acaba fragilizado dado o acúmulo de sistemas, mesmo com a potente performance de Sahra, engolida em tamanha profusão.

(crédito fotográfico não encontrado)

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__Canto Piu

De Giltanei Amorim

Teatro Gregório de Mattos, Salvador

O estado periférico ao homem diz muito sobre a civilidade a qual é submetido. Espécie de borda, em incessante tentativa de ser esquecido ou até mesmo anulado, o indivíduo sucumbe a uma existência desprovida de vontades, enquanto se mantém em luta para ser necessário ao contexto sócio-histórico, seja como for. É o que a biopolítica, já em suas traduções mais atuais, resume como estado de sobrevivência do ser, que não pode adquirir demasiada importância, nem deve ser completamente inútil aos sistemas dominantes. A esse indivíduo cabe outra consciência, limitada ou destituída de originalidade, o que lhe confere um estado físico igualmente frágil e servil. Está no corpo, então, a marca mais cruel dessa desqualificação de sua sociabilidade. Um corpo calado, oferecido, nada dialético e utilitário. Se é possível, ainda que deformadamente, ser utilizado pelo sistema, a maneira mais manipuladora se faz no trabalho, espécie de exercício contínuo e jamais conclusivo, pelo qual se aprisiona o gesto e imaginário às rotinas e ofertas. Daí o quão Canto Piu amplia a concepção de tantos aspectos biopolíticos ao sujeito periférico sem se ater a discursos óbvios. São quadros sucessivos, cada qual com seus tempos necessários, conduzidos pelas exigências próprias de seus gestos para construções e destruições de instantes poéticos. O surgimento dos tijolos através do corpo que se enrola e esconde sobre o tecido qual retira somado ao soterramento ou enterramento desse mesmo corpo podem nos conduzir às lembranças das valas abandonadas nas imensas periferias reais e metafóricas, mas também ao desaparecimento do indivíduo em sua anulação diante de nossas seguranças como espectadores. Não importam tanto as leituras, pois são amplas e potentes em todas as suas possibilidades. Assim é cada quadro, cada instante, cada novo movimento, cada novo início de outro gesto, cada trabalho, cada sobrevivência pela tentativa de subverter e resistir. Giltanei gera efetivamente pela ação um discurso pleno de potenciais justificativas intuindo a complexidade de um vocabulário particular que se revela por cada escolha. Dos pesos dos tijolos, das penas que sobrevoam leves, da dança projetada e a qual reage em fúria, decepção ou desistência, o espetáculo explicita a presença desse alguém que é, além dele mesmo, aqueles quais convenientemente nos esquecemos de notar. Quem afinal está mesmo na periferia, quando esta é a real maioria? Há muito sobre nós mesmos, portanto, e sobre aonde estamos e como lidamos com esse lugar tido por alguns como país. Se a precariedade argumentada por Giltanei sobre o espetáculo é também a resistência aos riscos e vulnerabilidades, Canto Piu supera as justificativas politizadoras e atinge o grau de ser obra artística, sem que para tanto precise diminuir a intensidade dos dois valores. A complexidade precisa e radical do precário de Giltanei, por fim, é das mais belas e fundamentais que percorreu nossos palcos esse ano. Saio do teatro doído pela maneira como seu discurso me atingiu, transformado pelo impacto das escolhas estéticas, preenchido por ter conhecido tamanho talento desse jovem artista. Giltanei prova o quanto a arte pode dizer e sensibilizar com a mesma potência se soubermos cantar sentimentos e pensamentos em iguais proporções.

foto Patrícia Cividanes

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Ruy Filho e Patrícia Cividanes viajam a convite do festival.

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