top of page

BIENAL SESC DE DANÇA 2017


Acompanhe aqui as resenhas de Ruy Filho sobre o festival.

__Do Desejo de Horizontes

De Mouvements Perpétuels, Burquina Faso

Coreografia Salia Sanou

Galpão Sesc, Campinas

Abrir um festival, seja qual for não é simples. Implica em compreender as diversas possibilidades de como envolver espectadores tão diversos, instituições, artistas, pesquisadores e curiosos. Por tanto, é já uma aventura a ser aplaudida. Do Desejo de Horizontes, espetáculo de Burquina Faso, país africano absolutamente desconhecido por nós, impõe risco ainda maior à abertura, mas um risco extremamente especial e singular. Assume a dimensão de aproximar em um evento de tamanho porta, a excepcionalidade que envolve e o quão inovador é permitir a esses artistas inicia-lo. O tema não poderia ser mais próximo a eles: Exílio e o quanto cabe ao indivíduo existir exilado frente a impossibilidade ser a ele mesmo ao que lhe impõem. O dilema não é simples, ainda que urgente e radicalmente presente ao contexto contemporâneo. Seja pela evidente representação dos acontecimentos recentes, travessias de mares, de terras, de culturas, crenças e medos; seja pela metafórica perspectiva do isolamento que a atualidade implica a todos, em maior ou menor grau. Os oito performers trazem no exílio qualidades dúbias ao devir, enquanto somam por seus olhares e gestos partes de desalento, surgem também partes de expectativas. São os encontros e desencontros entre olhos, sorrisos, braços e pernas que dignificam a dimensão humana daqueles em cena. Por vezes nos encantam ao serem quem são, em suas realidades e possibilidades. No entanto, a narrativa que validade os percursos entre os exílios e encontros, exílios e descobertas, por vezes é literal em demasia e acaba por construir menos sensações e mais esclarecimentos. Como se precisasse ser autoexplicativo para que pudéssemos atingir as cruezas que ambos os exílios traduzem. De fato, o encantamento ao que se assiste existe principalmente pelos dançarinos e suas insuspeitáveis capacidades em superar o coreógrafo. O elenco é poderoso. O primeiro solo e o primeiro duo são grandes presentes a qualquer apaixonado por dança, dada a rara qualidade técnica e impressionante particularidade dos vocabulários estéticos que oferecem. Do Desejo de Horizontes poderia ir mais longe, é verdade, se Sanou nos permitisse sonhar mais livres, junto a bailarinos tão especiais, se nos conduzisse a temores mais íntimos e libertasse nossa respiração aos esconderijos de nossos próprios exílios. De todo modo, o espetacular é mesmo assisti-los dançar, e ver nascer com eles mais um festival em tempo exilados de boas possibilidades.

foto Emma Derrier

---------------------------------------------------------------------------------------------------------

__Cachê [A parte que te cabe]

De Núcleo Tríade

Idealização e performance Adriana Macul e Mariana Vaz

Terminal Rodoviário de Campinas

Enquanto elas organizam e fixam cédulas de dinheiro de diversos valores ao piso, dando a elas uma perspectiva também estética, a curiosidade dos transeuntes se volta à quantia possível no imenso quadrado que constroem e no gesto como intencionalidade. Os mais inquietos se aventuram a perguntar às performers; os menos acostumados ou despreocupados se aproximam e rompem o espaço circunscrito pela fita branca cujo intuito é demarcar e proteger o contexto da instalação. As artistas discorrem pela ação sobre os valores do trabalho, da mecanização do trabalho, seus reconhecimentos produtivos, simbólicos e funcionais, e tudo também quando aplicado à arte. No entanto, o que produz imediata comunicação como instalação, perde-se na instância de diálogo entre as artistas e público. Perguntam surgem e parecem incomodar; aproximações parecem pequenas agressões à sacralidade da arte. Por não permitir ao diálogo expandir-se também como acontecimento, ou ao menos não provoca-lo quando surgido de maneira tão espontâneo, a ação limita-se contemplativa e gradativamente os interessados se esvaem, muitos em visível estado de desistência. A arte não é para eles, é para as artistas. Sem fluir a algo maior, portanto, a instalação performativa se esquiva de um dos seus principais argumentos: a performatividade, por querer sustenta-la, a partir de sua pureza conceitual. O equívoco é ser fundamental à performance, em sua especificidade de linguagem, estar disponível ao outro, pois somente no outro ela se realiza como reconfiguração de contextos específicos. Sobra-nos, então, a instalação, como interferência cênica e não performativa, construída por personagens quais desconhecemos e aos quais devemos nos manter distantes e pouco invasivos. Não há nenhuma tentativa nessa postura em ser maior ou melhor ao outro, é preciso reconhecer. Mas incomoda, no tempo em que acompanhei, a conversa surgir entre as performers de modo natural quando sozinhas e não a qualquer outro. Fica a dúvida, por fim, se a presença delas é necessária à performance ou bastaria encontrarmos o chão transmutado em um tapete de cédulas. Mas o quadrado na dimensão proposta talvez fosse pouco para provocar um impacto constrangedor ao redor. Fico com a resposta de uma das mulheres que ali buscaram interação e não a conseguiu, ao ligar para uma amiga e se divertir que iria pular sobre as notas para pagar uma noite divertida no forró. Ainda me lembro das malas de Geddell e o quanto a solidão daquelas montanhas de milhões foram capazes de impactar e ser radicalmente mais estéticas e performativas do que Cachê.

foto Adriana Macul

---------------------------------------------------------------------------------------------------------

__Fleshion [Aparências]

De Thelma Bonavita

MIS, Campinas

Substituímos o corpo como aparência única por algo que o redesenhe e reapresente, desde tempos imemoriais. No entanto, o que seria uma artificialidade decorrente da necessidade de proteção e personalização, em busca de uma identidade qualquer, transformou-se em um vocabulário mais amplo que inclui não apenas aquilo que simboliza, mas também como se escolhe. A moda, portanto, fez-se uma espécie de verborragia social que desvirtua tanto quanto amplia a perspectiva daquele que por ela se revela. Ao relacionar moda e carne, Thelma Bonavita reassume a qualidade da pele e da pele que veste a pele como sendo um sistema igualmente físico e inevitavelmente intrínseco ao indivíduo contemporâneo. Ocorre o espetáculo, pois, em dois momentos específicos, ambos ritualisticamente construídos. Por isso é preciso dividi-los para reuni-los a posterior. Após surgirem envoltas em camadas de tecidos diversos, ambas as dançarinas se valem do ritual de retirar as peças como uma espécie de preceito narrativo. Contudo, movem-se lentamente, enquanto os gestos de desatar, desvestir, libertar cada camada sobre o corpo são realizados com pressa descuidada. A diferença entre as intenções deixa em dúvida sobre a velocidade de uma frente à outra e confunde. De todo modo, o gestual parece pensado, lembrado, e quase nunca surgido consequente ao corpo que se quer transmutar, e assim se conquistar mais próximo de ser apenas ele mesmo. A primeira parte resume esse descobrir e ressurgir, portanto. Ainda é preciso chegarmos à segunda, o que ocorre mudando do ambiente bucólico junto ao jardim, para o edificado. Há aqui um paradoxo, se elas se desvelam por que a consequência é nos mudarmos ao prédio? No edifício, vestindo a arquitetura que agora nos molda espectadores aos modelos tradicionais, seguimos sem que o convite venha por um fluxo continuo. Em certo momento, a sensação é de um chamamento ao qual somos abandonando e qual devemos nos submeter e não mais participar. Tudo em nós muda em uma sala branca. Também nas performers. Aos poucos, a ausência de faces, então tapadas por cabelos que se misturam ao rosto, dinamiza a construção de um ser estético, ao tempo em que o desequilíbrio nos leva a perceber uma inviável existência desses novos organismos, pelo menos se partirmos da fisiologia humana. São seres singulares como se quer a moda, novas carnes de si mesmas transpostas à outra qualidade de aparência e humanização. E o instante ritualístico de surgimento desse outro, acaba confirmado pelo deslocamento das performers sem que toquem o chão, até que se afastem do olhar. Fleshion experimenta um corpo em ressurgimento simultaneamente ao descobrimento de só ser viável se tornado outro, reinventando-se estética e narrativamente. Poderia ser mais simples e mais poético, deixar os olhos internalizarem as personas e não tão expostos ao encontro, o que confere muitas vezes tons de cobrança e enfrentamento. Sendo a moda a carne desse outro tempo, o espetáculo entra em contradição por esbarrar na mesma possibilidade de ser também contexto impositivo ao espectador, mas com interessantes e instigantes momentos, quando nos permite apenas respirar e assistir as ritualizações.

foto Roberto Assem

---------------------------------------------------------------------------------------------------------

__Dança Doente

De Marcelo Evelin / Demolition Incorporada

CIS Guanabara, Campinas

Das vozes brasileiras que atraem curiosidade, certamente a de Marcelo Evelin é das mais aguardadas em muitos cantos do mundo, dado o rico contexto simbólico de suas coreografias e a qualidade de desdobrar aspectos da cultura brasileira por experimentos estéticos apenas dialogáveis aos de Lia Rodrigues. Não por pouco, então, ambos, Marcelo e Lia, essa dimensão díptica da dança contemporânea brasileira, frequentam os principais festivais com bons olhos, aos quais ainda somos estranhos e exóticos nesse Velho Mundo. Não se trata, porém, de definir seus espetáculos como tais. Marcelo supera o exotismo pela profunda capacidade em codificar a dança atual, propondo-lhe paradigmas e estéticas. Portanto, ter a Demolition Incorporada, companhia qual dirige, em um festival, ainda que vitorioso dentro de sua complexa agenda, é também um gesto de aproximação aos espectadores ao que de mais forte a cena internacional está interessada em produzir e assistir. Dito isso (e reconhecendo ser qualquer apresentação do artista Marcelo Evelin inferior a ele mesmo), chegamos à Bienal Sesc de Dança ansiosos e curiosos por sua nova criação: Dança Doente. Dessa vez, com ele em cena e um time eclético de performers, o espetáculo investiga possíveis aproximações entre Butoh e Candomblé, utilizando-se sobretudo da obra do lendário Hijikata Tatsumi e seu livro de memórias A dançarina doente. Que corpo é esse atingido por um mundo em destruição, não apenas literal, mas em suas estruturas mais fundantes, de modo a exigir-nos outros paradigmas? Quais as doenças acometidas ao insistente exercício de sobrevivermos? As indagações iniciais são por demais perturbadoras. Por isso, espera-se um espetáculo com igual propriedade. Surge um corpo contorcido, em luta contra sua condição de morte, e que atua em sofrimento, isolamento e expurgo, dependendo do ponto de vista que se quer dar, se de vencido, recusa ou revolta. O fato é que morrer, aceitar-se em processo de morrência, de adoecimento, reflete tanto os processos internos quanto externos de cada um. O espetáculo, por conseguinte, inicia forte e decidido. Marcelo não quer escapar dos arcabouços desse trio que condiciona o homem contemporâneo, e acerta ao expô-lo sem pudor. No primeiro tremular das lâmpadas frias, enquanto se espalham os dançarinos e resta-nos a perspectiva da mulher com seus traços orientais a nos observar impassível e imóvel, Marcelo redimensiona o corpo humano ao corpo da ambiência onde estamos. Há também aqui duas indagações imediatas plausíveis: a de estarmos ampliados no corpo ensurdecido ou catatônico da pequena dançarina; a de ser qual o corpo doente, o insistente em se contorcer ou o inativo e sem reação? Enquanto assistimos as cenas em uma espécie de extensão atemporal como acontecimentos, já que Marcelo propositadamente as leva para muito além da duração previsível – e aqui se facilita o entendimento ao contexto mais simples para relacionarmos ao Butoh, tanto quanto a dançarina oriental à personagem de Hijikata e a ele mesmo -, a dubiedade se soma como que se afirmando ser a mesma condição para existirmos. Assim, cada instante e gesto tem sua própria performatividade duracional e se alarga à medida em que não se resolve apenas por acontecer. A aproximação fundamental ao candomblé se faz pela presença de Omolu. O orixá pertence ao panteão dos velhos representantes e tem por característica a condição física ligada à varíola e outras doenças. Em suas duas versões, Omolu (velho) e Obaluaiyê (jovem), e ainda em algumas correntes Xapanã como terceira, cabe-lhe a cura ou condenação física dos homens, assumindo o paradigma de ser ele a nós a dimensão maior da fragilidade de nosso corpo físico. Unir Hijikata ao orixá, portanto, estabelece um fio narrativo definidor ao que o espetáculo almeja, oferecendo uma dimensão mítica ao corpo em cena e ao artista, já que Marcelo surge, em dado momento, executando uma travessia literal e simbólica seguido por outro tão próximo de sua fisionomia e aparência, como se o víssemos em dois tempos, jovem e maduro, passado e hoje. O encontro acontece como quem se devora e estupra em busca de ser novamente apenas um. Durante os 90 minutos de espetáculo, então, o espectador é apresentado e conduzido a vivenciar a experiência desse corpo ou corpos em estados agônicos. Todavia, o que é justificado como argumento ao trabalho, não ultrapassa a teoria e se perde na realização. Não há corpos e gestos realmente instigantes ao olhar, e nem sempre as técnicas e vocabulários individuais atingem a profundidade fundamental ao longo tempo dos instantes. Tampouco a narrativa absorvida pela experiência se concretiza de modo perturbador, exigindo do espectador certa rendição e espera pelo fim, já que não se firma como argumento, discurso, premissa ou poética. O espetáculo parece ter boas possibilidades, mas quase sempre sucumbe aos desperdícios ou exageros equivocados. Assim é a cena da relação sexual fingida, que poderia (e talvez devesse) ser real, já que evidentemente está ali para incomodar. Não incomoda e parece ingênua demais em sua tentativa. Ou as pernas ao fundo enquadradas pelo tecido negro erguido que esconde o resto dos corpos. Todavia a qualidade do acabamento cenográfico é tão inexplicavelmente ruim, que o próprio tecido em suas dobraduras nada japonesas distrai de modo irrecuperável. O mesmo pode ser dito da iluminação, ainda que nunca valha a pena destrincharmos um espetáculo por elementos individualizados, e nem mesmo analisa-lo dessa maneira. Todavia, o faço ligeiramente para demonstrar o quanto as partes desse todo não se ajudam, entretanto poderiam, e conduzem o espetáculo a ser um equívoco incompreensível em sua idealização primeira, antes mesmo das escolhas finais. Bastaria o primeiro momento, mesmo vinte minutos dele; bastaria a dança de Omolu e os dois tempos de Marcelo (somente em suas presenças, sem mordidas, sem sexos, sem literalidades) e já teríamos a potência do conceito trazida em plenitude. Dança Doente exagera e muito e se quer demais para além do necessário acabando por criar um espetáculo que pouco é capaz de inventar à dança e no espectador. Salva-se por uma incômoda aproximação dos dançarinos daqueles na primeira fila, quando conquista aplausos intimidados, e não tímidos ou calados. E isso é uma pena, pois parece ao fim somente um recurso para resolver o silêncio agudo instaurado durante a apresentação. Marcelo pode mais. Nem sempre dar certo, é das grandes questões da arte, quando verdadeiramente arte. Dessa vez, o corpo doente foi mesmo a dança. É esperar que morra, renasça e seja outra, como já muitas vezes foi; ou simplesmente que Marcelo perceba as consequências de enfrentamento dos fantasmas e escuridões sem se aventurar vencê-los para além de si mesmo. Esperemos o próximo trabalho com a mesma curiosidade e ansiedade que esse artista merece.

foto Mauricio Pokemon

---------------------------------------------------------------------------------------------------------

__Big Bang

De Gen Danza, Uruguai

Direção: Andrea Arobba

Galpão Sesc, Campinas

Muitas vezes as aproximações entre ciências e artes aparecem aos espectadores como inovações ou novidades. É preciso ter calma e perceber que esse deslocamento de uma a outra existe desde sempre. Basta pensarmos nos artistas renascentistas e teremos uma listagem dos melhores que confundiam ambos os polos. Há uma necessária perspectiva científica na experimentação artística, tanto quanto grandes manifestações criativas, muitas vezes singulares, ao estudo científico. Sem uma, a outra permanece limitada a ser apenas uma tentativa redundante de construções teóricas ou estéticas, portanto. Assim também é Big Bang, espetáculo uruguaio que investiga o surgimento e caos ao próprio homem, sobretudo pela perspectiva da presença trazida ao outro, ao convívio, semelhanças e diferenças que ocorrem e que, contudo, confirmam a busca incessante por pertencimento. Aos poucos, um a um, os dançarinos, gestos, sons e melodias são apresentados aos espectadores, como que formalizando suas identidades. Sem isso, é verdade, não teríamos acesso aos princípios cosmológicos, aos desenhos de representação dos movimentos ordinários. É quando se equalizam que as respostam começam a fazer sentido revelando os performers pelo contexto coletivo, sociabilizado, culturalizado, ritualizado. A dança então precisa ser provocada a cada instante, desdobrando-se em perspectivas específicas, o que lhe confere momentos isolados como que capítulos dessa história. Por vezes parece seguir o fluxo consequencial, mas também o de retornar ao princípio, de recomeçar processo e paradigmas que instituem outros contextos, como se não fosse capaz fugirmos ao mesmo resultado. Por necessitar de diversos momentos, o espetáculo confunde em proposições e acaba remetido demasiadamente a tentativas que parecem revisitar Maguy Marin, ainda que já superadas pela própria artista. Ser ela um ponto de reconhecimento não é pouco, já que a coreógrafa é uma das grandes criadoras dentro da historiografia da dança, e por que não também da arte. Ainda assim, os momentos são enfraquecidos por eles mesmos, dado a irregularidade de potência. É preciso reconhecer em Big Bang uma vontade sincera de criação, todavia, tanto quando de inclusão ao mercado já mais estruturo da dança moderna. Seria isso um problema? Sim, se pensarmos no quanto um festival pode oferecer ao espectador de perspectivas singulares inesperadas. E não, se aceitarmos não ser o foco central da criação a tentativa pela originalidade máxima, apenas sua eficiente e digna realização. Busco mais a primeira qualidade de experiência, o que me traz certo conflito ao perceber haver em Andrea Arobba inquietação suficiente para algo ainda mais autoral, já que sua pesquisa instiga e conversa com aspectos tangenciais ao fazer artístico desde sempre. Entretanto, há o público possivelmente com outra experiência frente ao espetáculo, menos frequente às salas de espetáculos. Talvez a resposta deva vir mais dele mesmo. Em um festival de dança com tantas edições, será que o público ainda necessite de espetáculos com enfoques tão populares e mercadológicos, por mais sinceros que sejam? Dilema nada fácil a ser provocado como justificativa também à construção dos festivais.

foto Sahand Minaei

---------------------------------------------------------------------------------------------------------

__Composição para Esculturas e um Corpo

De Néle Azevedo e Marina Tonório

CIS Guanabara Armazém, Campinas

As figuras languidas de Néle Azevedo se esticamos instituindo uma nova possibilidade de como representar pessoas. Pessoas, pois não importam se homens ou mulheres; apenas se reconhece nas esculturas os traços que as sugerem humanas. Impossível não recordas de Giacometti, então. As dele em bronze, permanentes; as dela em gelo, efêmeras. A dançarina retorcendo-se, coreografizando-se pelo corredor formado pelas esculturas suspensas não deixa ser tentativas de reinventar o corpo ou de como representa-lo. No entanto, por ser impossível de não ser real, a deformação parece surgir por pretextos subjetivos e interiores, por mais que saibamos a performer construir um diálogo particular com as esculturas humanóides. Impossível não recordar Bacon, então. As dele em pintura, atormentadas, as de Marina Tenório em presença, sublimadas. As lembranças não surgem por acaso. Se dão por recordar a entrevista de um a outro, conversa que acabou por ser a simulação de uma obra em conjunto, ainda que intelectual. Em Composição para Esculturas e um Corpo, as artistas dialogam igualmente e superam a fala para possibilitar ao corpo e estética outra potência ao discurso. A bela instalação e o diálogo empreendido pela dança provoca três instantes ao espetáculo. De início, a descoberta de ambos, esculturas e performer, enquanto a sonoridade assume eficientemente a perspectiva de condução de como absorve-las. É dado tempo para cada um dos envolvidos serem assumidos como verbo. Contudo, gelos quebram e os corpos se partem, gotas caem, a luz reflete rios abstratos que passam pelas esculturas em direção ao chão. E lentamente a instalação parece vencer a dança sem grande dificuldade. Esse segundo instante, quando já nos desligamos da performer, a instalação parece trair a intenção de ser uma obra única. Por vezes, é preferível apenas a ambiência, ainda que nada seja contra a dança. Todavia, um corpo ali parece mesmo distrair e desnecessário. Então o terceiro momento ocorre, logo após a saída de cena. Ao ficarmos apenas nós e as esculturas, quase de imediato a sacralidade que havia se desfaz. Conversas despreocupadas tomam a sala, pessoas levantam e mexem na instalação que continua sua narrativa ao desaparecimento, selfs e poses, risos e violências, e para quem insiste em assistir a obra tudo se esvai sem possibilidade de retorno. Faltou a figura exatamente da mulher. Era a dançarina quem dimensionava a instalação para além de um ambiente decorado. Era Marina, portanto, a força capaz de reinventar o entorno em um ambiente poético e espetacular. Fecha-se assim o acerto desse encontro: com uma artista plástica capaz de validar a dançarina, tanto quanto a dançarina possibilitou contexto à instalação. Uma espécie de outro lado do espelho do ocorrido entre Bacon e Giacometti, pelo qual as artistas reafirmam a grandeza dos encontros entre poesias.

foto Everton Campanha

---------------------------------------------------------------------------------------------------------

__Gentileza de Um Gigante + Viagem a uma Planície Enrugada

De Gustavo Ciríaco

Ginásio Sesc, Campinas

Ao olhar para o horizonte, investiga-se a si ou ao futuro? A inclusão da paisagem como perspectiva exige ter o homem como centro de difusão. Assim foi por séculos. E nem sempre fora assim. De fato, o homem conquistou em argumentos ter a centralidade ao pensamento, e justificar a tudo a partir de si pareceu ser um bom movimento ao que se tornaria modernidade. Reconhecido, então, mais masculino do que feminino, mas ainda assim os dois, a figura humana durou como representação do mundo trazendo sobretudo a qualidade de decifrá-lo. Desse modo, o mundo, esse planeta inquestionável e supostamente traduzido, serviu ao valor da humanidade como máximo expoente de uma natureza ininterrupta. A evolução é comprovadamente justificada por ter evoluído até nós. No entanto, o mesmo mundo hoje expõe o homem como sentido máximo de sua destruição. Guerras entre si, guerras entre os ecossistemas, guerras entre biomas, guerras não-naturais. Passam por aí os paradigmas apontados pelos antropocentristas, essa época atual em que a presença humana é determinante e irremediável a todos e quaisquer aspectos de continuidade do planeta. Há controvérsias sobre isso. Alguns filósofos apontam nesse mesmo argumento o contexto de não entendimento da presença humana como algo natural, como se pudesse ser diferente da natureza qual ataca; um desejo de se manter presente ao futuro do universo e que talvez não faça qualquer sentido, como nunca fez a nenhuma espécie. Por isso, a paisagem que ora era desconhecida por não ser diferente do homem, passou de percebida à representação das consequências dessa presença, e agora dividida em ser o retrato do pior do homem e o pior retrato do homem que quer ainda ser alguém. Não é simples se posicionar, portanto. Simples é, contudo, a percepção que o mundo é outro e somos outros nesse mundo diferente. E nada aparece apontar que ambos transformam-se para melhores. Gentileza de um Gigante traz o homem e mulher como quem se destaca na construção e destruição das paisagens; Viagem a uma Planície Enrugada, por sua vez, adentra às catástrofes ambientais que não precisariam ocorrer. Os dois espetáculos podem ser assistidos independentes; todavia é um revelado dividido em duas experiências. Por trazerem ambos um casal, a continuação se faz mais intensa ainda. No primeiro, as paisagens são erguidas em miniaturas sobre a mesa branca, preenchida por morros, vales, florestas, lagos, rios. O casal está nu e com isso provocam uma inevitável associação simbólica ao contexto bíblico, ainda que nada seja tão obvio assim. Os gigantes também podem ser mitológicos titãs em fúria e reinvenção dessas paisagens. Então tudo depende mais de quais são as crenças cosmogônicas do espectador do que necessariamente suas interpretações. Nessa dinâmica de transferir parte da leitura ao público, Ciríaco produz uma obra radicalmente narrativa e pessoal. No segundo, as paisagens servem aos acontecimentos que se impõem como representações de desastres ambientais e não só de modo inesperado e criativo. Cada um é interessante como ação e solução estética, e seu fim problematiza a presença humana como uma existência lírica apocalíptica. O casal está vestido e isso sugere, sobretudo se assistido a ambos, o humano já civilizado por contextos culturais e sociais. Em Viagem a uma Planície Enrugada o que antes era uma mesa suspensa em um universo negro, agora é chão igualmente branco no fundo de uma cavidade qual assistimos superiores. Ora somos, então, espectadores cúmplices de um possível início, ora permanecemos protegidos como voyeurs de destruições quais aparentemente não somos parte. O retângulo branco, esse planeta tela, é a maneira como o inventamos ao descobri-lo, tanto quanto o suporte ao descontrole de nossa presença (diria o antropoceno) ou insistência (diriam os contrários). São duas experiências. E são duas obras tão belas e simples que surpreendem na imediatez com que provocam silêncio e conduzem o olhar aos gestos e respostas estéticas. Ciríaco continua a desenhar o entorno, a pensar o indivíduo, o viver, o convívio, o outro, só que agora expande essa percepção ao todo, ao mundo, às histórias, às urgências. É outro artista, ainda sendo ele mesmo. Ou talvez seja essa apenas uma segunda parcela sua. Seu continuar. Ser próprio e novo ao continuar. O que não há dúvida é de ser esse díptico um dos espetáculos mais interessantes nessa Bienal, pelo como o artista se reinventa e pelos dilemas que aponta ao humano sem precisar fazer disso discursos oportunos menores. Sua poesia vence a necessidade de discursos. Faz-se arte.

foto Nacho Correa e Vera Marmelo

---------------------------------------------------------------------------------------------------------

__Sobre Kazuo Ohno

De Takao Kawaguchi, Japão

Cis Guanabara Gare, Campinas

Em nenhum momento, Takao Kawaguchi tenta ludibriar o espectador. O programa do espetáculo confirma nunca ter assistiu pessoalmente Kazuo Ohno dançar, apenas por vídeos, e tampouco teve treinamento em Butoh para realizar o espetáculo que é exatamente sobre isso. Interessa-lhe um espetáculo contrário aos preceitos fundamentais da linguagem japonesa, sobretudo a característica de ser um desdobramento criativo pessoal. Copiando gestos e vocabulários pelo seus reconhecimentos físicos e só, o performer reproduzir alguns dos mais significativos espetáculos do mestre. Há muito nisso a ser discutido. E, assim como a própria provocação, é preciso lidar com as dimensões internas e externas ao alcançado. Se verdadeiramente Takao realiza uma excepcional aproximação aos movimentos de Kazuo Ohno, não se sabe. Por não haver o referencial primeiro, cabe ao espectador aceitar o limite de certo reconhecimento, como uma sombra que recorda a imagem ainda na memória. Não é viável, portanto, questionar se as mãos, as máscaras, os tempos, as vestes alcançam o impacto de uma construção profundamente elaborada, o que submete o espectador a ser somente cúmplice e aceitar a falta de parâmetros para maiores argumentações favoráveis e não. O externo, portanto, não basta ao argumento do visível. Contudo, algo é evidente logo de início: Kazuo Ohno não está no palco em nenhuma hipótese. Era próprio dele a qualidade de ser a própria presença o suficiente para ressignificar a dança, uma atmosfera que estabelecia outra qualidade ao entorno e acometia a todos como em uma espécie de ritual particular. Ao aprendiz, ou nem isso já que não quer sê-lo, a ausência dessa potência de instaurar outras ambiências a partir de si, é evidente, sobrando-lhe frieza e nenhuma empatia capaz de particulariza-lo, apenas se compreendido o esforço físico por dançar, mas isso é mesmo muito pouco perante a história original das coreografias e do próprio Butoh. Compara-se, por conseguinte, artistas e não artes, e Takao é surrado frente a um sentimento ainda presente aos que por um momento assistiram Kazuo Ohno. O interno, igualmente, não basta ao argumento do convívio. Sem importar a dança em si, sem importar a dimensão do artista que só valida o original como incomparável, sobra como último recurso a artimanha que envolve subverter o butoh à replicação mera e simplesmente. É como se argumentasse caber ao contemporâneo principalmente produtificar a tudo e todos sem responsabilidade em ir além do produto e ser a arte também uma espécie de subproduto às vontades de um mercado de vanguardas que nada mais pode oferecer senão cópias. Takao dança por duas horas no palco e outra meia-hora ou mais em um prólogo improvisado qual parangoleia diversos elementos dentre as pessoas e transeuntes, e em muitos instantes é interessante assistir. Mas quer ser Kazuo Ohno ao seu modo, e perde exatamente por não ser nem este e nem a ele próprio. A não ser que ser ele seja exatamente ser produto de uma vontade que só se justifica aos interessados por passageiras novidades ou pelos aficionados pelos efeitos de um mercado oportuno e banal.

foto Bozzo

---------------------------------------------------------------------------------------------------------

__Solidão Pública

Concepção e performance Adilso Machado

Teatro Sesc, Campinas

O homem surge ao canto do palco, e em seu corpo explodem pulsos e pulsões que, ao acúmulo, modificam-lhe e redimensionam a maneira como se apresenta. Aos poucos, a insistência desse corpo ininterrupto submete a presença a ser suficientemente narrativa. A solidão existe, ainda que esteja a narrativa acompanhada e conduzida pela iluminação que lhe desenha atmosferas diversas e a sonoridade que introduz o espectador à sensações mais interiores desenhando-a angustiada. Nesse existir solitário público, já que frente a todos, persiste como em desespero por ser percebido, enquanto o esgotamento aparentemente invencível acaba por atingir o espectador que precisa lidar com a tormenta física auto-infringida pelo performer. A carga dramática é grande e verdadeira. Assim, o espetáculo impõe o risco da desistência aos dois lados, exige e provoca. É impossível não associá-lo à Piranha, de Wagner Schwartz, com quem Adilso descreve ter buscado interlocução. Assim como ele, Wagner permanecia por longo tempo em igual estado de pulsões que modificavam narrativamente seu corpo até o extremo. A diferença, entretanto, está no contexto de observação e acesso à narrativa. Piranha apresentava como partida uma breve explicação sobre a particularidade do peixe e suas condições de existência, sobrevivência e morte, atribuindo ao texto projetado tamanha qualidade poética que esta passa também a servir como observá-lo, por isso entramos ao espetáculo como quem busca o peixe simbólico e não o homem, e assistimos um corpo em luta por existir. Em Solidão Pública, por sua vez, a literalidade dá contextos mais diretos, afinal, está ele só e simultaneamente com os espectadores. Diferencia-se, então, da qualidade performativa de Wagner para permanecer de modo mais evidente ao universo propriamente da dança, enquanto a clareza de ser a estrutura física uma coreográfica com períodos e ações a reafirma como linguagem. A pesquisa sobre a qualidade desse movimento como princípio coreográfico não é nova, nem em Wagner, e pode ser levantada desde há muito tempo na historiografia da dança. Então não se trata de querer-lhe originalidade. Mas, por ser Wagner o artista indicado como interlocutor, é impossível não ver também Wagner ao assistir Adilso. Um Wagner cujo contexto agora é mais filosoficamente mais direcionado aos dilemas da atualidade, em contraposição ao que Wagner já apresentou em poética e singularidade filosófica. Ainda assim, Adilso de fato impressiona sobre o quanto é capaz de reinventar o próprio corpo apenas estando ali junto a nós, e fazer disso um movimento discursivo sobre o homem atual. Ao fim, a soma entre Piranha e Solidão Pública necessita de um tempo para ser recebida e assimilada, mas se assumida ao espectador pode ser um díptico instigante por dois artistas em diálogo por provocações mútuas.

foto Rodrigo Ascensão

---------------------------------------------------------------------------------------------------------

__Folk-s Você ainda me amará amanhã?

De Alessandro Sciarroni, Itália

Teatro Castro Mendes, Campinas

Ao escolher o Schuhplattler como elemento a ser coreografado, Alessandro Sciarroni provoca uma instigante subversão de alguns aspectos tão evidentes à dança contemporânea. Não quer ser outra coisa, que não a dança folclórica da Bavária e Tirol cuja existência é apontada já em textos e cartas séculos atrás, antes mesmo das variações aos salões franceses, por exemplo. Ao não ser outra coisa, portanto, sustenta-se como linguagem e não como artifício de metáfora ao uso do coreógrafo, como tanto se vê em muitas apropriações e aproximações. O que lhe requer certa coragem, afinal, quem na plateia quer assistir aos seis dançarinos executarem apenas o Schuhplattler, quando evidentemente se vai ao teatro para ver um espetáculo contemporâneo tal qual é concebido a priori? Não é esse seu dilema. E os seis dançarinos conquistam de imediato a empatia do público tão logo são trazidos ao palco e iniciam os movimentos. Isso muda tudo. A complexidade da coreografia, seu contexto acrobático, sua exigência física, a disposição à concentração máxima para sustentar o conjunto encanta e intriga. Pelo excesso, o que é somente uma dança folclórica ganha minuto a minuto mais valores e o espetáculo se confirma partir de uma ótima investigação técnica e estética para alcançar algo mais. É nesse mais que outro aspecto é subvertido por Sciarroni. O quanto é necessário a uma coreografia para que esta seja ao espectador experiências narrativas e simbólicas? Em Folks, a resposta é a construção de um convívio hipnótico, da respiração conjunta aos performers, do desafio compartilhado. Por ser simples de ser compreendida, são os detalhes das danças, as sequências realizadas que precisam de atenção máxima para acompanhamento dos gestos e ruídos produzidos pelos corpos. Provavelmente uma das melhores iluminações da Bienal, o contexto simbólico é provocado exatamente pela delicada variação do ambiente cênico, ora íntimo, ora expandido, dinamizando a coreografia insistentemente repetitiva, o que nos permite elaborar diálogos diferentes entre os dançarinos, interpretações subjetivas a cada momento, perspectivas temporais e percepções particulares do executado. Ou seja, tudo funciona em um conjunto uníssono. No entanto, por termos sido avisado que os dançarinos ali ficarão até o esgotamento de cada um, quando lhes será permitido abandonar o palco sem a possibilidade de retorno, ao tempo em que também o espectador poderá sair do teatro sem volta, o desafio que provoca sorrisos não parece atingir o extremo possível. Nem sempre os dançarinos demonstram-se próximos aos seus limites, e temos a sensação de que o desafio está calculado e manipulado. Sem essa informação, o espetáculo seria uma realização incontestável, cumprindo suas intenções e surpreendendo até mesmo nos instantes em que traz humor à permanência. Ao provocar o espectador gera-se outra expectativa, e não chegando ao desafio de fato acaba frustrando aquele disponível ao próprio limite. Uma frase dita ao começo, e tudo o que parece ser ainda mais lúdico e participativo se perde sem retorno. Um equívoco ingênuo demais a um trabalho tão interessante.

foto Andrea Macchia

---------------------------------------------------------------------------------------------------------

Ruy Filho e Patrícia Cividanes viajam a convite do festival.

bottom of page