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CENOGRAFIA, GLOBALIZAÇÃO, PERFORMANCE: POÉTICAS DA DESTRUIÇÃO

As discussões sobre os efeitos da globalização no campo da estética têm apontado “a generalização do descartável como o fenômeno sociológico que mais passa desapercebido no século XXI” (Bourriaud:2011,79). Esta situação tem promovido uma precariedade geral, baseada em mercadorias e relações, cuja breve validade já impregnou nossa percepção. Este sistema, que opera através da insatisfação, oferece diariamente necessidades construídas, aonde o desejo de adquirir determinado valor se sobrepõe à própria coisa, gerando formatações de todo o tipo, apesar da aparente diversidade. As tendências globais que determinam o consumo têm produzido assim a emergência de um vocabulário formal planetário, cuja padronização de imaginários equaliza e empobrece a produção.

As estratégias destrutivas, procedimento do sistema capitalista, ao mesmo tempo que incentivam a renovação de espaços e objetos, numa cenografização mundial genérica que toma tudo como aparência a ser transformada, conformam paisagens cada vez mais entulhadas de materiais efêmeros e precários, que circulam e são descartados diariamente. Caçambas, containers, ruas e terrenos baldios acumulam coisas de toda a ordem, edifícios e casas quaisquer em escombros, além das infindáveis manutenções temporárias dominam a realidade global.

Se tudo muda aceleradamente por um padrão vicioso, podemos considerar que vivemos em ambientes imediatos, construídos e reformatados constantemente por estilos e tendências. Esses espaços têm sido tomados como reais em sua materialidade, incentivando uma compreensão da representação como ‘verdade’. Instala-se, então, um paradoxo: se tomamos a lógica do evento/espetáculo como uma realidade acelerada de superfícies adesivadas de materiais baratos, esta torna-se ao mesmo tempo verdade e representação, criando camadas complexas para a compreensão das relações entre imagem, simulacro e experiência (Baudrillard:1991,10).

Ao naturalizar este processo, o invisibilizamos, pois nossa atenção está direcionada ao novo. Acostumados à hiper-realidade, desejamos valores baseados no consumo e na ideia de riqueza como um valor sociocultural, especialmente em países colonizados que carregam a dimensão de inferioridade civilizatória. Por quê, então, insistimos na percepção da realidade e sua materialidade como algo definitivo, sólido e acabado, em detrimento da proliferação de espaços provisórios, renováveis e fragmentados?

Neste sentido, esta provocação busca atravessar, da cenografia à perfomatividade, um percurso que envolve o contexto da cidade e de sua produção para se debruçar sobre seus descartes – talvez o que tenhamos de mais real (já disse Baudrillard que “todo real é residual”) – e encontrar neles caminhos que podem nos elucidar sobre nossa forma de habitar o mundo e, consequentemente, de representá-lo. Quais imaginários escolhemos para a construção de valores individuais e coletivos? Como relacionamos formas, materiais e técnicas a valores socioculturais? O que, a partir da experiência espaço-visual brasileira, teríamos a dizer? Que poéticas podem emergir desta condição? Que tipo de situações ela provoca?

COMO ATRAVESSAR O CAMPO DESVASTADO: ENTRE O ESPETÁCULO E SEUS ESCOMBROS

Ao cruzar os territórios artístico, político e econômico através do espaço, sua materialidade em constante deslocamento e as ações nele/dele decorrentes, esse projeto propõe a formulação de uma praxis denominada poética da destruição. Esta expressão originou-se da observação, registro, relacionamento e manipulação de lugares e materiais abandonados. POÉTICA(S) DA DESTRUIÇÃO define-se como um eixo de pesquisa artística, uma maneira de perceber a realidade através de seus processos de destruição e reconstrução, que toma a cultura material e sua produção de consumo e descarte como repertório, conferindo-lhe nova visibilidade.

Esta investigação integra a pesquisa O cenógrafo em situação: entre o destruir e o destruído, em desenvolvimento no Laboratório de Práticas Performativas do Centro de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo, uma plataforma transdisciplinar, a fim de investigar novos instrumentos e estratégias para o cenógrafo. O projeto articula um conjunto de procedimentos para a criação de dispositivos, performances e práticas compartilhadas em que a ideia de cenografia dissolve-se e torna-se uma relação, uma percepção, um acontecimento (Cornago:2015,22) - uma experiência que mobiliza o corpo e seus atravessamentos.

A plataforma abrange disciplinas como artes cênicas, visuais, filosofia, geografia, urbanismo, arqueologia e audiovisual e privilegia percursos, derivas, ações de coleta, catalogação e a experiência direta com diferentes materialidades e seus estados. POÉTICA(S) DA DESTRUIÇÃO opera através da apropriação provisória do espaço e dos materiais, ligada à performance, e não da lógica figurativa e permanente da arquitetura. Nesse processo, ao debruçar-se sobre o próprio corpo para “encontrar na experiência urbana sua dimensão antropológica” (Mongin, 2009:265), o cenógrafo expande sua linguagem e se coloca em situação diante do mundo, age, vasculha, performa, tomando sua própria relação como um laboratório de investigação da realidade (Lotker:2015,169). Estas práticas dão origem a criações híbridas que abordam não só as relações formais e conceituais que compõem a performance/cena, mas também o contexto sociocultural em que estão inseridas, suas representações, linguagens e modos de realização.

Neste sentido, a destruição integra processos de transformação e dá-se no agora. Assim, entre o estilhaço e a memória, cíclica e contínua, sua poética, por um lado, é temida pois associada à morte e aos traumas da humanidade, e por outro, é utilizada para desconstruir ou desmanchar imagens e imaginários, revelando padrões estabelecidos e comportamentos preconcebidos. A iconografia do mundo precário – suas sobras, restos, lixo, fragmentos e tudo o que é rejeitado, descartado – busca, a partir de sua própria condição, um modo de existência a fim de desconstruir sistemas binários como belo/feio, riqueza/pobreza, masculino/feminino, construção/destruição, etc. (Derrida:2002,48). Seus processos deixam rastros, vestígios, fragmentos, depoimentos que geram um poderoso campo de associações visuais e estéticas.

Portanto, a destruição será investigada neste contexto como uma alegoria, um procedimento demolidor crítico sendo, ao mesmo tempo e paradoxalmente, um elemento natural constitutivo de todo ser vivo e, portanto, um devir humano. Acredito que esta pesquisa, ao concentrar-se diretamente sobre a materialidade constitutiva da linguagem, ao recuar diante do resultado da produção cenográfica, propõe o questionamento das categorias de representação ainda hegemônicas, apontando outras possibilidades de compreensão das relações entre espaço, forma, matéria e imagem construtoras da visualidade.

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REFERÊNCIAS

BAUDRILLARD, Jean. Simulação e Simulacro. Lisboa: Relógio d’água,1991.

BOURRIAUD, Nicolas. Radicante – por uma estética da globalização; trad. Dorothée de

Bruchard. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

CORNAGO. Óscar. Ensayos de teoria escénica – sobre teatralidad, público y democracia. Madrid:

ABADA Editores, 2015.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2002.

LOTKER, Sodja Zupanc. SharedSpace: Music, Weather, Politics or Where is the Theatre Now? In

SharedSpace: Music, Weather, Politics – New Appproaches to Scenography Prague Quadrennial

2015. Prague: Arts and Theatre Institute, 2015.

MONGIN, Olivier. A condição urbana – a cidade na era da globalização. São Paulo: Estação

Liberdade, 2009.

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A reflexão foi apresentada por Renato Bolelli durante o evento realizado na USP, em São Paulo. Renato é resenhista e pesquisador fixo na Antro Positivo sobre Cenografia e as perspectivas da ambiência cênica e teatral contemporâneas.

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