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As Palavras de Jó

Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo Cabo Verde Teatro Sérgio Cardoso - SP

Quando Jó enfrenta o desafio entre deus e o diabo tendo sua fé em disputa, a bíblia conduz a mitologia ao paradigma de quais o limites da crença ao divino e sua pertinência. Ainda q o sofrimento seja oferecido ao fiel, este permanece em luta por seu amor a deus. Matéi Visniec não inverte essa lógica em seu texto sobre o personagem. Claro q essa pode ser a primeira impressão, já que agora Jó é testado em sua fé sobre o homem. No entanto, há mais. Sustenta uma inversão que subverte o próprio conceito de fé, a partir de novos paradigmas. Afinal, é só ao homem que deposita sua fé ou sobre si mesmo, sendo ele próprio apenas humano? E não seria, portanto, compreender o próprio homem como divino, tal qual o filho e não o pai bíblico? Cabe testar, então, Jó no que nele mesmo reside de humano, e são as palavras suas maiores expressões ao entendimento de sua humanidade. O texto começa com uma sucessão de nãos. Frases curtas que negam valores, sentimentos e servem à afirmação do homem como detentor de sua própria consciência. É então um homem racionalista, moderno, descartiano, cuja compreensão de si leva a perceber e conceber o todo. Todavia, segue de imediato uma sequência de frases igualmente curtas, cortantes, de sins. E as afirmativas em excesso expõe também a condição de pela fala afirmar-se, ao tempo que tal necessidade revela sua condição de submissão. Jó, de Matéi, é, por fim, o assombro do humano frente aos paradoxos de uma humanidade esfacelada por se querer independente, ao tempo que resiste apenas pela instância de sua fé no outro, seja essa como for.

Dar conta de tamanha complexidade exige simplicidade. É preciso estar em cena simultaneamente disponível às palavras apresentando-as não apenas pelas falas, e sim pelo corpo verborrágico e discursivo. É exatamente pela ótima compreensão desses aspectos que João Branco conquista a dimensão pretendida pelo autor e torna o personagem plausível para além do mítico bíblico, comum tanto quanto qualquer um de nós. Antecipando o verbo materializado, surge no palco em longa e fundamental cena de um corpo que grita sua presença como verdade e realidade, como uma experiência humana em lamento frente aos dilemas de ser aquilo que mais busca reconhecer. A figura retorcida impõe temor ao próprio homem que surgirá, tanto quanto receio ao surgimento da fala. João não se esquiva da responsabilidade em dizer. Feito um palanque-palco, assumindo assim o verbo como instinto racional, o pequeno espaço é suficiente para assumir a imponência de sua presença diluída em dor, porém dignificada ainda mais por sua fragilidade, e nos minutos que se seguem, João personifica a capacidade própria dos grandes atores em congelar o tempo, como se respirássemos junto a ele o último sugar de ar desse corpo imagem em estado de fim. Um espetáculo forte, na medida precisa para ator e autor se encontrarem, conduzido ainda pelo excepcional talento do jovem Nuno Tavares, capaz de musicar e sonorizar as dimensões mais íntimas escondidas nesse corpo em fuga e nas palavras não ditas. Juntos, João e Nuno inventam um monólogo somado em dois. Um espetáculo sobretudo apaixonado pelo palco e pela capacidade de subversão da escrita. Um elogio dolorido à importância de pensarmos o contemporâneo e o próprio teatro como poucas vezes o teatro consegue ter.

foto Adilson Ramos

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