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JUNTA - Festival Internacional de Dança de Teresina


Acompanhe aqui as resenhas de Ruy Filho sobre os espetáculos do festival.

SALA 3

Criação e Performance: Juliana França Direção: Juliana França e Alejandro Ahmed

Teresina -PI

Logo de início, a mulher que aguarda o público impõe outro instante ao que virá. Sem seus cabelos, quais nos acostumamos a encontra-la nos dias anteriores, é ela outra; figura específica e própria, cuja particularidade definitiva subordina tudo a seguir. Entrar na sala, então, é acomodar-se a seu universo. E como dele nada se conhece por ter se tornado teatro, o mistério amplia ainda mais a presença como meio de acesso. Tanto a depender de uma única pessoa poderia ser um risco. No entanto, Juliana França conduz com a empatia necessária o convívio através da mistura enigmática de força, violência, delicadeza e timidez. Há uma certa melancolia que persiste no seu olhar durante a performance. E ela é necessária ao que se experimentará. A agressividade pulsante assumida no giro arriscado junto a cabos e pesos que perdura por vinte minutos ou mais é também perfeita à completude fundamental da sublimação do corpo que se assiste. Aos poucos, gestos e pele se funde à arquitetura expandindo um ao outro, e a sala qual ocupa passa a ser ela mesma presença e alguém; espaço esse onde o tempo se esvai ao ritmo precioso da elaborada criação de um cubo físico e definidor. Explorando as possibilidades reais, as materialidades e subespaços disponíveis, a máxima aristotélica de caber à matéria o desejo pelo chão (assim explicou o que viria a ser conhecido como gravidade), é subvertida pela dimensão poética conquistada aos objetos mais triviais. Ao contorno erguido por negros fios, pela trama entrecruzada por diversos pontos e objetos, surge a quadratura geométrica que suspende a si mesma e ao que mais precisar para existir, inclusive o corpo-meio. Dessa maneira, Juliana faz do desenho tridimensional erguido uma espécie de instalação arte, e desta a perspectiva de uma performatividade não prevista expandida pela própria artista ao contexto original, transformando assim em narrativa concluída e ainda aberta, não necessariamente autoexplicativa. Ao construir o espaço através de sua ressignificação, portanto, a arquitetura assume a qualidade dialética de ser ao mesmo tempo campo e verbo de discursos possíveis. Enquanto permanece espaço para que nele se exista, é também a perspectiva daquilo que nele se revela. Inevitável subversão perceptiva do que venha a ser a própria dialética, quando então deixa-se de pensar o espaço para por ele ser pensado, sem contudo instituir na inversão qualquer limitação de objetivos e funções. Não cabe ao original do espaço traduzí-lo, mas ao exercício de torna-lo vivo e real a qualidade de conter a artista como cúmplice. Sala 3, novo espetáculo de Juliana França, com direção compartilhada de Alejandro Ahmed, supera o discurso e alcança algo extremamente maior e mais radical, a ambiência da arte como experiência para invenção simbólica. Após uma hora, o espectador deixa a sala encantado por cada instante. Assistir Juliana girar é hipnótico e nos provoca gradativo esvaziamento; assistí-la riscar com os fios o espaço, até surgir o gigantesco cubo flutuante, é enigmático e provocativo ao pensamento. E o que seria por si só suficiente como acontecimento é mais, dada a excepcional narrativa sonora de Tom Monteiro, submetendo os ruídos mais íntimos e pessoais da própria sala aos microfones. Como se essa sentisse e também falasse, como se a arquitetura viesse nos contar algo, como se a mulher conversasse com o cubo, como se o cubo fosse a verborragia final do pensamento em estado bruto de elaboração. Poucas vezes somos apresentados a obras de arte. Juliana faz isso sem exagero, e como se fosse simples ser genial.

foto Victor Rodrigues

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PINDORAMA

Criação e Direção: Lia Rodrigues

Teresina -PI

Uma das mais poéticas qualidades humanas é imaginar a si mesmo e sua origem. A curiosidade percorre nosso imaginário desde sempre, muito antes do racionalismo cartesiano de Descartes esclarecer existirmos por pensarmos. Trata-se também de tentativas de afirmar quem somos idealizando o princípio das coisas a partir de como as definimos. Assim, cada cultura possui sua fábula, seus signos, suas intenções, suas narrativas. Ora mais destinadas a construir acesso ao divino, e por ele submeter aos caprichos de um destino imposto; ora para cientificar os fatos, apropriando-se do universo para contemplar a própria inteligência ao decifrá-lo. No entanto, para além dos usos políticos, religiosos e narcisistas, coexistem paralelamente diversas variações sobre a naturalidade da origem, entendendo a natureza como mítica perspectiva. É esse o caso em Pindorama, de Lia Rodrigues. Através de uma leitura simbólica-poética, o espetáculo apresenta a versão da artista para uma cosmogonia nossa, própria, particular. Esse nosso é sobretudo mais íntimo do que a generalização do humano, diz respeito ao brasileiro, a terra brasilis, a Pindorama, tal como era nomeada esses terras pelas civilizações nativas. Esqueça a ideia distorcida de ser esse o índio. Como o termo explícita, há nele a simplificação pragmática dos colonizadores que atribuíram à pluralidade de povos uma igual condição. Pindorama, ao não ser sobre o índio, apresenta em corpos de homens e mulheres nus a dimensão da humanidade anterior aos rótulos, fala pelo anônimo reconhecível e não pelo classificado subjulgado. São três os instrumentos para construção dessa cosmogonia, então. O mar, o ser e a naturalização civilizatória. Representando cada parte por instrumentais simbolicos próprios, o mar surge e age construído em cena por um grandioso plástico movimentado pelos performers. Existir em seu interior é, ao mesmo tempo, surgir como sua vontade e batalhar ao próprio existir como individualidade. Dança-se a violência de sua força, enquanto os percursos são impostos àquele que resiste. E a percepção de haver um roteiro ao corpo, conduzido que está a um estado e lugar, reativa sua dimensão de inevitabilidade do destino. Não prévio, como nas tragédias gregas, mas pré-trágico, tendo a natureza como ampliação do desconhecimento de si mesmo e de suas consequências. Como segundo código, os corpos expostos e delicadamente não explorados em excesso, iluminados que são por uma delicada e precisa penumbra de luz, apresenta homens e mulher pré-sujeitos, anteriores às dimensões alcançadas no acúmulo de histórias, valores, escolhas e perversões. São corpos, portanto, e não nus. Como bem definiria Freud, a pele como primeira vestimenta do indivíduo, portanto. Aos poucos, as belas gotas gigantes distribuídas pelo espaço são encontradas pelos corpos, dialogam explodindo e modificando o espaço de modo irrecuperável. E é, a partir dessa nova qualidade determinada à ambiência, que o próprio espectador é trazido para participar nessa cosmogonia. Espalha-se, ocupa, preenche. E a distância entre o corpo único formado pelos performers nus reunidos em pulsão de respiração e o corpo civilizado vestido, moldado, individualizado daqueles que observam o diferente, expõe com coerência a distância entre ambos, tanto aos tempos imemoriais e o presente, quanto ao existir como realidade apenas e sujeito de sua própria história. Lia conquista com muita facilidade o convívio do espectador com cada um desses movimentos no espetáculo, dada a precisão argumentativa, limpeza gestual, alargamento dos ritmos e sutileza nas passagens de um a outro. Pindorama sustenta-se, ainda, por um coletivo de performers rico, diverso, representativo e tecnicamente equiparado, o que aumenta ainda mais a atmosfera única e uníssona tão fundamental aos preceitos escolhidos. Um espetáculo que supera sua dimensão espetacular, validando ainda mais a dança como potência estética ao contemporâneo como argumento de discursos políticos insurgentes, e reafirma a necessidade de olharmos para nossas origens superando os ensinamentos coloniais. Pindorama, por fim, nos ensina a ser mais belamente nós mesmos. Seja lá o que isso for.

foto Sammi Landweer

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OS SERRENHOS DO CALDEIRÃO

Concepção e interpretação: Vera Mantero

Theatro 4 de Setembro

Teresina -PI

Ao olhar para tradições, Vera Mantero encontra algo maior. O que poderia ser uma investigação sobre pessoas e costumes, a partir da população da Serra do Caldeirão, no Algarve, faz-se sobre os seres, humano e natureza, e seus desaparecimentos frente às desertificações. Se não o homem em si, o processo de sua desumanização. Assim, amplia a investigação para qualquer um. Em Os Serrenhos do Caldeirão, o silêncio que percorre o interior dos homens e mulheres, surge presente sobretudo pelo som, não discursos. É então qualidade estética, materialização do invisível, pelo qual representa a possibilidade da presença se manifestar. Por ser o cantar das maiores exposições desse interior, o trabalho braçal executado durante o canto completa a construção da realidade como algo moldável, elaborado. Vera se volta a tantos aspectos com delicada subjetividade, traçando um panorama intelectual mais do que teórico. Vai de Artaud a Viveiro de Castro, John Cage a Michel Giacometti, dentre outros, elaborando os pensamentos ao tempo em que convive com o pedaço de tronco oco, fundamental por ser este mais simbólico e não apenas literal. Os artistas e intelectuais que passeiam pelo espetáculo servem ao estímulo de sua descoberta e à produção de certo estado onírico ao invisível, ao silêncio, ao existir. A mulher que termina sob a árvore, após vivê-la por dezenas de extensões físicas, assiste ao esvaziamento de sua alma ao som da reza-cantiga projetada ao fundo do palco. Todavia a alma não segue ao infinito, ao etéreo. Foge do real ordinário de volta ao poético, a própria Vera, o palco, a plateia, os silêncios que permanecem. Por fim, corpo e árvore são apenas um, e a desertificação se iguala à desumanização como consequência ao esquecimento dos valores mínimos e das tradições. Não se trata, é preciso dizer, de saudosismo, e sim de compreensão de nossas ausências e distâncias. Um espetáculo singelo, profundo e de sensibilidade radicalmente singular. Sendo a proposta do festival também a produção como um gesto de resistência para sustentar um manifesto à favor da manutenção de espaços de convívio, o mais fundamental a qualquer festival, convidar-nos à percepção poética de nós mesmo é, sem dúvida, um dos maiores acertos dessa edição que apenas inicia. É de se esperar um ano especial ao Junta, então.

foto Humberto Araujo

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CORPOGRAFIAS DO PIXO

Concepção e performers: Gê Viana e Márcia de Aquino

Ruas de Teresina -PI

Ao passar pelo muro, ele persiste anônimo e desapercebido ao transeunte. O pixo, diferentemente do grafite, quase sempre se perde pela simplificação da leitura de ser um rabisco indevido, invasor e despropositado. No entanto, é mais do que supõem os incomodados, que tanto insistem em seu vandalismo. Não que também não o seja, mas é importante se atentar porque surge e a o que responde. Primeiro, aquele risco traz em si a assinatura de quem o gera. Nada anônimo, portanto. Todavia irreconhecível por ignorarmos a existência daquele que, pelo traço, grita presença. Se a sociedade apaga sem qualquer pudor um indivíduo, seja por qual interesse for, este retorna pela escrita que se apropria dos seus muros particulares e se presentifica em ruído. Persiste a qualidade ante-higienista da sociedade e expõe a gentrificação sem meandro. Portanto, o pixo q incomoda está ali exatamente para isso mesmo. Em Corpografia s do Pixo, Márcia de Aquino e Gê Viana retornam aos riscos oferecendo-lhes identidades culturais maiores. Trazem ao corpo os ritmos e formas dos traços sobre as paredes, em leituras físicas que os espelham ao mesmo tempo em que os reinterpretam. O diálogo que conferem ao entorno é significativo e imediato. Pessoas param, perguntam, divertem-se, caminham cúmplices. Torna-se então o pixo uma presença social que persistirá ao imaginário de quem o descobriu físico, pelo corpo. As performers estabelecem vocabulários e estratégias específicas aos estilos dos pixos encontrados ao acaso, o que permite ao observador também estabelecer conexões com a qualidade de ser a dança uma linguagem em processo de invento. Ainda que possam evoluir a condição final do gesto, muitas vezes abandonado sem qualquer indício de seu fim, lapidando seus acabamentos e apresentação, a ação faz surgir um discurso silencioso e efetivo sobre o quanto a cidade está esquecida do comum, ainda que determine sobre nós os instrumentos de como vivemos. Dançar os pixos torna-os mais do que as tentativas de inclusão quais já são, e os eleva a paradigmas civilizatórios mais amplos.

foto Caio Bruno

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SAGRAÇÃO

Concepção e performer: Olga Lamas

Ruas de Teresina -PI

Entre diversas especificidades da performance está seu acontecimento não ocorrer exatamente no artista que a realiza. É preciso o outro, o observador, para que faça sentido. Diferentemente do teatro e dança, para as quais o espectador conclui a ação ao assistí-la, a performance implica em ser efetivada naquele que a observa. É no gesto de encontro com a ação que esta é presentificada. Sem o outro, portanto, a performance não existe. E existir é diferente de se realizar, como tanto se justifica pelas demais linguagens. Existir implica em ser acontecimento, instante, desvio. Sem implicar em qualquer preparação do outro, enquanto minimamente é preciso ir ao teatro. É preciso não ser, contudo, tão rígido quanto possa parecer o argumento, em um primeiro momento, afinal, é claro que encontraremos performances com estruturas definidas, teatros com altos graus de imprevisibilidade. O que sustenta a dimensão performativa é sobretudo no como a presença, e não apenas a ação, é reconduzida ao outro se ressignificando como gesto, para só então voltar ao seu observador. É exatamente esse alto nível de complexidade que ocorre em Sagração. Rosto coberto por flores, ainda que aquele que lhe atravessa a frente ou observa de longe, ou mesmo o rapaz que se aproxima para fazer um self, nada saiba sobre os propósitos da artista, sobre A Sagração da Primavera e seu significado à arte, ainda assim, é a anormalidade da figura andarilha que instiga, é sua falta de rosto ou a poética evidente? Nas três instâncias, o trabalho de Olga Lamas realiza bons estímulos à curiosidade. Quem é a mulher que ali se esconde e se soma ao inusitado de sua figura? E por que anda por ali? O que espera? Por estarmos deslocados dos espaços óbvios da cultura, o cotidiano surge de modo ainda mais amplificador dessas interrogações. Alguns riem, outros concluem e mudam de ideia algumas vezes, outros temem. A oferenda proposta ao início da primavera, portanto, é maior do que parece. Desvia o cotidiano, torna o experienciar poético irreduzível, o perder-se em devaneio inconcluso. A chegada das flores é sempre um instante romântico. E, em Sagração, talvez seja essa a oferenda maior de Olga a todos os atingidos por sua poesia.

foto Caio Bruno

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ALUMIA

Concepção e interpretação: Giulia Britto e Lia Brito

Parque da Cidadania

Teresina -PI

Quem pode dançar? Quem dança aqui? As perguntas ampliam de imediato a relação do espectador, que deixa ser apenas quem assiste e passa a atuar também como interlocutor do espetáculo. O propósito de Giulia e Lia é questionar os preceitos estruturados pelas convenções e, por que não, do mercado da dança. Que isso ocorra em um festival, é melhor ainda. No entanto, persiste pela própria composição da obra - duas mulheres ligadas por cordas, tendo duas sinetas de metais como epicentro - o distanciamento de quem de fato ali dança, afinal. Se a imagem oferecida complica a segunda questão, pois impõe imediata resposta, também possibilita à primeira maior dubiedade sobre suas certezas. Nada diz que não poderá um terceiro ser incluído, por elas ou vontade própria. Não ocorre, mas verdadeiramente isso não está implicitamente proibido. Por estarem as frases escritas em pequenos espelhos, são delas ou nossas, para nós ou para elas? Novamente, indagar quem dança pede ao espectador definir e concluir produzindo inevitável retorno ao paradoxo já apontado. Por que definir se a problemática é exatamente não responder? Ainda que não seja essa a vontade das performers, toda pergunta objetiva implica na reflexão por parte do ouvinte em forma de solução. E esse é o paradoxo que incomoda nessa expressão. Já, quem pode, por sua vez, suscita algo mais complexo ao estar espelhado. Agir ao reflexo de quem o lê posicionando-o mais politicamente à dança como estado de expressão humana. Se as perguntas não solucionam os dilemas, e nem precisam, a relevância está na relação entre os corpos interligados. Assume a fala, em forma de musicalidade, o próprio corpo ao se mover, gerando por conseguinte o mesmo aos sinos, amplificando a voz que coexiste em ambas as questões. Vozes ou consciências? No instante em que, já sem os espelhos, espelham uma a outra, transferindo assim a elas próprias a face dada ao anônimo espectador, o som cessa pela qualidade dos movimentos não moverem mais os sinos. O verbo-música, seja como for, necessita de oposição. A cidade surge ao redor, é o novo gesto sonoro ao espetáculo, trazendo-nos de volta à realidade comum. É a cidade quem dança nesses minutos; quem oferece poder aos que quiserem dançar suas vielas, paisagens e estruturas. Então a dança, mais do que uma linguagem artística específica a alguns, pode ser sim entendida como a ocupação de lugares, o ocupar pessoas, ser vocabulário para ressignificações e novas percepções. A corda limita e traduz uma a outra em uma dubiedade instigante. Ainda assim os corpos e movimentos podem ser mais elaborados. Superar o possível é o desafio da própria linguagem, quando, então, a dança surgirá em forma de discurso também poético a quem tentar respondê-las.

Em um segundo momento, reiniciando o espetáculo em outro ponto do parque, com mais público presente, surge a sedução como meio de aproximação ao outro. E fica a sensação de hoje, para encontrarmos o outro com perguntas, ser necessário seduzir com a impossibilidade de respostas definitivas.

foto Caio Bruno

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ÓPERA NUDA

Direção e performance: Isaura Tupiniquim

Sesc Campos Sales

Teresina -PI

O quanto a construção de uma persona impõe sua própria desconstrução? Ao ampliar a catarse de um ritual particular de ressignificações, Isaura Tupiniquim, em Ópera Nuda, eleva o tom a seu propósito discursivo, instituindo subversão aos ditames do patronato sobre o corpo da mulher. O corpo propositadamente sensualizado inicia o espetáculo já o traduzindo por sua objetificação, produtificação e utilitarismo. Não para uso e recurso da própria mulher, mas ao do homem que lhe impõe estereótipos de prazer e qualidades quanto maior for sua servidão. No gesto banal de uma coreografia erotizada, cuja exposição constrange os ditames do experimentalismo artístico, como se a esse só coube o refinamento pleno e não o vocabulário comum, o feminino se dissolve frente a identidade fabricada, portanto. Quem ali está sob a pele, construída artificialmente, mais do que o corpo exposto, na verdade é aquela escondida na ausência de si mesmo. Em um segundo instante, o corpo se converte em fala, e a verborragia microfonada reassume o corpo ou, ao menos, a perspectiva de sua identidade. Lembra muito o mecanismo utilizado nas últimas décadas por Angélica Liddell, o da mulher em pulsão de fala, o corpo molhado de vermelho como que ensanguentado, o olhar direto ao espectador como que afrontando-o por uma culpa silenciosa, o palco estetizado. Ainda que não seja novo, os instrumentos escolhidos ainda se fazem urgentes e continuam válidos à desconstrução desse corpo imposto. Está no arcabouço indecifrável de uma totalização catártica sobre si mesmo o melhor instante. Ao fundo projetada, a índia, cabocla, em caça, em luta, ou em dança de sua liberdade selvagem, desvela ao espectador a mulher que surge por esse contemporâneo ritual estético-físico. E o excesso se faz o valor mais significativo e precioso à libertação, pois sem ele nenhuma catarse pode ser atingida. Nem a ela, nem a nós. Isaura não se limita ao excesso necessário e assume para si a responsabilidade de produzí-lo com violência, desejo e argumento. Se deixamos o teatro com a sensação de assistirmos a uma ritualização em busca de sua própria identidade, também saímos transportados a outro contexto sobre o feminino e seu grito de urgência e autonomia. Há uma nova mulher que surge a todos, ao final. Uma mulher que não se resolve plenamente nesses minutos, mas que é construída dia-a-dia, apresentação por apresentação. E isso, por si só, é muito, tanto quanto discurso performativo, quanto política de reinvenção.

(crédito fotográfico não informado)

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OLYMPIA / O QUE PODEMOS DIZER DO PIERRE

Concepção e interpretação: Vera Mantero

Theatro 4 de Setembro

Teresina -PI

Podemos chamar os dois solos apresentados em sequência, como sendo dois solos falsos. Falsos, pois Vera traz para sua companhia diversos intelectuais e artistas, entrecruzado momentos da arte e do pensamento sem qualquer preocupação em se explicar ou justificar de antemão. São suas escolhas e assim devemos lidar com elas. Como deve ser, afinal. No entanto, assistindo-os novamente, pois já os tinha visto, persiste a sensação de passado em ambos os espetáculos, certo esgotamento das escolhas já tão bem superadas, como pode ser visto no trabalho mais recente trazido à abertura. Olympia apresenta ao espectador uma experiência que, para além do movimento e do subtexto, é também narrativa. Tal sensação é inevitável, quando colocadas ações em sequência, dando-lhes sentidos de momentos. É impossível não lhes construir sentidos próprios e buscar um argumento às escolhas. Mas não há um ponto ao qual chegarmos, e a perspectiva narrativa se esvai dissimulando um sentido que não podemos acessar por completo. Parece mesmo faltar um terceiro momento justificando assim os dois mais evidentes, o percurso puxando a cama para o canto do palco, a transformação da performer na figura do personagem clássico da pintura de Édouard Manet. Vera desiste de ser Olímpia pousando sobre a cama ou a liberta? Ao deixar cama e se mover pelo palco, portanto, surge outra, igualmente exposta, não mais ao pintor francês no século XIX, mas ao espectador de agora. Instaura um contexto melancólico a si e a personagem ao retornar ao habitat da pintura original. Essa ação não costura necessariamente uma conclusão ou ponto de apoio às conclusões, apenas valida o tom anedótico da artista sobre a personagem, o que é realmente insuficiente. Segue o segundo espetáculo. Em Pierre, já ela mesma, enquanto lemos e ouvimos Deleuze discorrer sobre Espinoza, tais questões se revela ainda mais frágeis. É impossível acompanhar movimentos e pensamentos, corpo e palavras. Talvez seja esse mesmo o intuito; todavia, permanece o espectador em um hiato incapaz de suprir sozinho, e tudo se esgota pela soma das impossibilidades. Deleuze fala sobre a morte, a condição de ser sempre externa a quem morre. Então que seja. Se pensarmos nossa exterioridade ao díptico apresentado, a inconclusão simbólica narrativa de um e a inacessibilidade simbólico argumentativa do outro talvez sejam exemplos sim de uma espécie de exterioridade à artista, e possa a ser entendida como ambiência de morte, ou estados inevitáveis de morrência. Insistir em suas presentificações é o mesmo que negar o morrer e trazer para si a realização do fim, o que por si só contraria tudo o que Deleuze e Espinoza argumentaram até então. Como bem colocaram os filósofos, a morte (ou o fim) nunca é a face plena de quem morre. E ambos os espetáculos cabe a observação se seus tempos, esse imponderável existir externo às vontades e sentimentos, já não sinalizou o esgotamento e o fim.

fotos Caio Bruno

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Ruy Filho viajou a convite do festival.

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