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CIRCOS - festival internacional sesc de circo


Olhe pela janela, avisaram. Enquanto o carro passeia pela estrada, ali, no canto improvisado, está a lona erguida imponente, convidando o público para mais tarde, desatentos animais em jaula e palhaços quase prontos passeiam pelo terreno. Do outro lado, um homem arremessa malabares; mais ao fundo, outro arremessa uma garota que não cai. A lentidão desse instante particular não parece preocupar nenhum dele com o atraso. É ele natural. Em cada chegada, em cada despedida, assim se faz, tendo mais ao lado o mágico que se ocupa em reunir pombas fugidias e os baralhos que escorregam de suas mangas. Olha a tudo, a pequena menina contorcida, com seus olhos próximos aos pés; e nossos olhares se cruzam por um milésimo. Assim é, o que além da janela do carro se revela ao menino torcendo para estacionarem. Apenas um circo, respondem. Outro. Como tantos. Mas, além disso, é também O circo. Espaço de imaginação e delírio, onde o menino ganhou certa vez um algodão doce e pipoca na entrada, onde uma menina, e não ele, ganhou a bola chutada pelo elefante, onde se gritou de susto com o salto triplo aéreo e riu durante muitos dias com as lembranças das brincadeiras. Mais até. Guardou a memória de um estado de felicidade inexplicável, apenas compreensível aos que lá estiveram. Deve também a esses momentos o querer criar, o invento que se manteve, a curiosidade pelos segredos, o lúdico como estado de inquietação e desejo. Os circos que passaram pelas janelas, as tendas que se abriram para tê-lo na plateia, ainda estão por aí, de alguma maneira. Podem não ter sobrevivido à realidade cruel de suas rotinas heróicas. Contudo perduram no trajeto de cada estrada como acontecimento possível de retorno e eternamente surpreendente.

Cresci. E o circo ficou na imagem perdida de uma ilusão que igualmente se escondeu. Levou décadas para que ressurgisse, ainda que muitas vezes estivesse tão próximo. Sem a infância, o circo foi substituído pela condição de infantilização, de algo não mais próprio a mim. E segui sem ele, aparentemente indo bem. Ou era a ilusão criada inconscientemente como argumento para me manter tão distante. Quase buscando nisso um jeito de sufocar todas as possibilidades de ser ainda criança, como se fosse esse existir ruim. Até que, sem qualquer intenção, o circo voltar a estampar a paisagem à minha frente. Foi sobretudo o circo contemporâneo quem fez tudo renascer. Descobri outro picadeiro, quase sempre o próprio palco do teatro, e também espaços nada previsíveis ao intento. Descobri a qualidade de artistas, cujas proposições vão além do previsível, friccionando as fronteiras entre as linguagens e o que por elas se esperar. O circo contemporâneo traz a dimensão da inquietude sobre sua própria historiografia e dinamiza o clássico a valores atuais, ganha em estética, supera a técnica, inventa ambiências, subverte narrativas, desconstrói tradições, aponta outros paradigmas às artes cênicas e performativas. Ajudou-me também o Circos a descobrir tanto.

Inquieta-me, frente o prazer recuperado nesse convívio, o quanto nossos artistas ainda continuam trancados em seus mundos, sem se atreverem a descer das seguranças de seus interesses. Infelizmente foram poucos os atores, diretores e dramaturgos encontrados nos espetáculos.

Há muito a apreender na edição do Circos 2017. Excepcionais projetos de design de luz, como os apresentados pelo vietnamita A O Lang Pho e o argentino-franco-suíço Santa Madera; a excepcional nada óbvia sonoridade do brasileiro-finlandês Dois; a radicalidade anárquica erótica do sueco All Genius All Idiot; o humor fino do franco-uruguaio Concerto para Deux Clowns - apenas para citar alguns dos destaques da programação.

Ao não lotarem as salas e espaços, os ditos artistas da cena perderam experiências imprescindíveis de diálogos com as urgências mais próximas a todos nós. Aos seus modos, cada cultura presente nos espetáculos, misturada e reinventada, compôs olhares próprios sobre a atualidade, sistematizando escolhas estéticas e vocabulários circenses para a elaboração de discursos precisos e inquietos. É uma perda e tanto, portanto, não presenciar esses diálogos, pois, sem eles, os artistas acabarão conduzidos pelas mesmos trajetos de sempre, sem se aterem haver um mundo maior, para além do vidro que os separa do futuro. O presente, é preciso dizer, é somente isso mesmo, a possibilidade do artista seguir ao amanhã; e permanecer em linha reta só limita a capacidade em torna-lo diferente.

Teremos outros festivais. Surgirão novas chances, encontros, desvios de percepções e rotas. Até lá, hoje me somo em ser o que ainda desconheço de mim, o que me construí, e parte do menino que havia abandonado. O circo, então, provoca em sua nova face uma revolução ao ser a dimensão mais preciosa à sensibilização do espectador. Se a nova revolução há de ser poética, e será, então o festival Circos é, dentre os acontecimentos programados na cidade, um dos mais especiais. O homem muda e muito ao ser silenciado por uma flecha que corta o palco, por um corpo em rodopio ininterrupto no interior de um arco, pela beleza de uma fábula construídas apenas por cestos e bambus, pelo risco de um movimento impossível junto ao mastro, pela mulher capaz de tocar brilhantemente um violino de ponta-cabeça enquanto nos faz rir. A poesia é sim a dimensão mais urgente à humanização de nossos esconderijos mais íntimos. Isso é revolucionário e fundamental. Torcendo agora para que os artistas compreendam isso, pois o público já o sabe, e as salas estiveram lotadas de interessados em viver experiências e aventuras novas. Vida longa ao circo, então. E ao Circos.

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CRÍTICAS >

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A O LANG PHO

Concepção e criação:

Tuan Le, Nguyen Lan Maurice, Nguyen Nhat Ly e Nguyen Tan Loc

Sesc Vila Mariana, SP

Existe uma utopia romântica sobre uma certo modo de viver o mundo que define como sendo perdas frente ao existir urbano e tudo o que esse ambiente impõe ao homem. Não necessariamente tal utopia está errada ou insiste por sua sobrevivência, apenas se valida pela condição de nos alertar haver outros modos de nos relacionarmos e de vivenciarmos o convívio com o outro. O urbano, tão presente ao contemporâneo, quando mais da metade da população mundial está agora nos grandes centros, é parte dessa troca que já se dá inevitável. Mudamos a maneira de viver e isso também modifica nossa maneira de conviver e existir. Como se tentasse olhar então a um passado não mais completamente possível de ser experimentado em sua plenitude, ainda que relativamente recente, o Nouveau Cirque eu Vietnã contrapõe em cena o ontem e o agora, a partir dos paradoxos entre os cotidianos específicos de cada época. O Vilarejo e a Cidade é mais do que um artifício à criação de números circenses, portanto. Traz na dicotomia comentários a ambos os modos de vida, pelos quais a melancolia de uma sociedade em ressignificação surge inevitável. Se o vilarejo é comunitário, prático e até mesmo ingênuo de suas possibilidades, a cidade é isoladora e estrutura em guetos de interesses diversos. E muito desse sentimento presente em ambos os ambientes, a melancolia, surge também através da delicadeza no uso de elementos como cestos e bambus, em uma estetização poética, em que a iluminação produz ambiências particulares aos instantes do espetáculo. O circo pode ser sim maior do que bons números acrobáticos e atingir importância à percepção do viver em suas múltiplas complexidades. Ao meu lado, as crianças se divertiam, os adultos sorriam. Ambos comentavam alto. E muitos, talvez, envolvidos que estavam em seus próprios sentimentos, nem se atentaram que comentavam sobre saudades de si mesmos. De fato, um espetáculo especial ao início do Circos, Festival internacional Sesc de Circo.

foto Nguyen The Duong

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SANTA MADERA

Concepção e Elenco: Juan Ignacio Tula e Stefan Kinsman

Sesc Pompéia, SP

O homem demarca no espaço cênico a área em que tudo ocorrerá. O círculo é feito com terra, o que, logo de início, impõe ao gesto sem qualquer cerimônia tons ritualísticos. Outro homem surge, dessa vez dentro da roda, como se esta o circunscrevesse e estruturasse seu corpo. Giram, dançam, lutam, conquistam, perdem, dividem, disputam. As leituras são múltiplas ao que representam cada movimento na e com a roda. E o que parece apenas um exercício circense executado com precisão técnica ímpar vai além ao instituir contextos simbólicos e narrativos. Assiste-se mais do que gestos e desafios; são instantes quase sempre acompanhados por uma sonoridade nada literal que surpreendem pelo valor hipnótico e sugestivo. Quem são os dois homens que dialogam suas existências a partir da roda? E a o quê ou quem buscam existir? Na relação que se amplifica minuto à minuto forma-se primeiro um duplo, ora antagonista ora simbiótico, cuja soma concretiza a presença humana no ritual realizado como sendo a este fundamental. Assim, surge também o duplo a quem o humano se destina pelo ritual. A leitura dependerá de cada espectador, e há a generosidade dos performer em não facilitar com traduções simplistas. Esse outro a quem se dirigem é representado somente pela própria roda e sua circularidade infinita que pode ser tanto o início constante quanto a ininterrupção do fim. E é mesmo ao fim do espetáculo a revelação mais dialógica entre humano e roda. Com um simples efeito luminoso e o girar excessivo a imagem da dança é modificada por um efeito ótico, e ambos se multiplicam como se pudéssemos, enfim, assisti-los por dentro das imagens. A roda passa a ser muitas e o homem que baila tem sua corporeidade transmutada e dissolvida. A diluição dá conta de atingido o objetivo do ritual. O homem é sublimado ao interior da roda. E resta ao espectador a experiência de um silêncio último como convite a se juntar ao eterno. Poucas vezes um espetáculo circense consegue ser tão especial unindo o violento, perigoso, poético e belo. O festival apenas começa e certamente esse já é um de seus grandes momentos.

foto Christopher Aynaud de Lage

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DOIS

Concepção e elenco: Luís Sartori do Vale e Pedro Sartori do Vale

Coprodução: Theater op de Markt / Dommelhof (Berlim).

Sesc Santana, SP

O tempo de uma torrada sendo lentamente aquecida, até saltar para fora, feito uma acrobacia que leva o corpo a existir no ar. O tempo de uma flecha arremessada pelo arco, cruzando o espaço em direção a um destino por vezes conhecido, por vezes enigmático, cuja trajetória impõe risco ao corpo que a aguarda. O tempo de um sorriso que perdura sem se perceber, enquanto aquele que o abriga reacende a condição lúdica do que significa assistir a algo especial. Porque é mesmo especial. É o encontro entre dois irmãos, e isso é muito. Um encontro no palco, após seus próprios caminhos, e isso é único. Caminhos que se encontram pela paixão em comum pelo arco e flecha, o que é instigante. E que os levou a criar um argumento que fosse a união de tudo isso, o que faz do espetáculo um acontecimento singular. Dois, desses dois jovens irmãos, inclui a jovialidade pelo humor, e também pela perspectiva do quão potente é serem quem são. Desses dois artistas, expõe a maturidade de criadores, cujo refinamento estético surpreende ao ser simples e incomum. O espetáculo, então, divertido e inesperado, traz a ambos os envolvidos, irmãos e artistas, ao centro do universo circense, entendendo o tempo do circo para além de números e exposições de capacidades técnicas. Que o circo sempre fora uma instituição familiar parece ser algo esquecido pelo contemporâneo, que o abriga muitas vezes fora da lona e picadeiro. Como se a esses tivesse terminado seus tempos. Isso porque o circo vem se reinventando cada dia mais. Não apenas no como apresentar números clássicos, mas, e sobretudo, como apropriar-se de si mesmo como linguagem para construções simbólicas e narrativas. Distante da lona tradicional, os artistas conquistam maior liberdade para proporem experiências aos espectadores. O que não significa que a lona está fadada ao isolamento, e sim de que o circo, hoje, se suporta como estética mais do que apenas contexto. O que é ótimo.Há algo de subversão no uso dos arcos e flechas, e o quanto superam as expectativas estéticas ao usá-los, impondo riscos e risos. E há principalmente uma dimensão humana que se firma com apreço, romantismo, cumplicidade e delicadeza. Dois, por fim, é mesmo o trabalho de duas pessoas. De dois artistas. E um dos espetáculos mais interessantes dessa edição do festival. É impossível assistí-lo apenas uma vez. Sai-se do teatro querendo assistir de novo e descobrir os erros e acertos em suas diversas possibilidades. Talvez o dois trazido no título também já nos indicasse o previsível desse querer os irmãos outra vez. Um tempo só a eles é pouco.

foto Andre Baumecker

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