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Normalopatas

Cia. Àtropical

Texto e Direção: Dan Nakagawa

Estação Satyros, SP

A peça não é densa ao ponto de codificar sua razão de ser, e os elementos do pop encontram sutil conforto cênico nas vozes do animado, focado e sardônico elenco.Há diversos acertos, desde a interpretação dos atores ao texto. O figurino é eficiente em situar as personagens e suas relações expressionistas, entretanto não é possível perceber no material encenado os elementos que apresentam a obra por meio de seu subtítulo. A “pornochanchada” estaria manifestada em qual dimensão do trabalho? Eu vi, e ótima, farsa tragicômica. E o "Brasil", também anunciado, onde se vê? Estaria comprimido nas figuras burguesas (burguesopatas ) que permeiam o primeiro ato? No samba não-diegético que irrompe das cenas? Prefiro imaginar que "Normalopatas ", por si, apresenta com maior objetividade a vocação do trabalho. Disparo deste ponto a minha fala - Um "padronóide", um normalopata inserido no contexto hegemônico do que há de belo e "correto", segundo o contemporâneo ocidental, irrompe a primeira cena espumando feito cão raivoso, ela não resiste e saliva até desfalecer no centro do palco. É o primeiro sintoma da direção cinematográfica, amparada no conceito de corte e montagem, "deus x-máquina", que está por vir. A morte desta figura inaugura a odisséia de mortes que costurarão as teses que a peça elaborará. E, esta introdução acontece como uma positiva “síntese falsa”. Sintetizando o título e não o funcionamento da obra. Oferece-nos um mapa perverso para encontrarmos, não sem surpresas agradáveis durante a peça, o constante reforço desta imagem inicial. E aqui está a primeira inversão que a Cia. Àtropical propõe ao expectador - nesta realidade os normativos são os primeiros que encontram a morte certa, e o insano Metá , nosso Roberto Zucco assimétrico, resiste, torna-se octogenário e, terminando o ciclo de lugares incomuns que estabeleceu até aqui, como gesto final mata a normalidade de sua filha, fazendo-a tornar-se o pai. A loucura do pai e o sentido da vida do pai. Metá, outra vez mata algo (portanto vive) até o fim. Silvia Fernandes introduz seu panorama do teatro de grupo dos anos 70 no Brasil citando a Sátira como estrutura ideológica e formal de grupos como “Podminoga”, “Asdrubal Trouxe” e outros. Esta característica tão brasileira quanto essencialmente teatral vê-se recuperada nas formas que a Cia. Àtropical opta por utilizar em sua representação do mundo. Talvez isto deixe na língua o sabor datado que o trabalho oferece ao público. Assim, o desavisado pensa ter encontrado ali uma cena ultrapassada, mas, este não é capaz de notar que o recuo da forma visa recuperar um pouco do tempo dessa brasilidade perdida, doença pela qual tem passado o teatro paulistano destas primeiras duas décadas do século 21. Fatalmente a Cia. Àtropical apresenta eficiente vacina para nos salvar dessa efemeridade. É preciso dizer que o teatro vem se tornando lar dos melancólicos e paranóicos, mas, em acertado contraponto, aqui nesse trabalho, o que há de rico no teatro brasileiro ressurge com fôlego e ímpeto. Eis a utilidade das tragicomédias que estão conscientes para as debilidades formais de seu tempo. De forma episódica, a dramaturgia sobrevoa o protagonista, e com inteligência elabora primeiro seus contextos. Após esta estruturação que está a serviço de clarificar o rumo das cenas, como faziam as imagens iniciais dos filmes típicos das décadas de 80/90 (panorâmicas), surge Metá embuído de sentidos e de deveres de contradição. Metá é responsável pela desordem total, apesar de estar inserido em uma família também notadamente insana. São insanos preocupados com imagem, sofisticação e bons modos. Logo, serão sempre aceitos em um número maior de grupos, enquanto Metá estará sempre acondicionado à marginalidade total... Neste caso, optar pelo molho sugo e não pelo molho branco seria prenuncio de uma trilha de sangue em seu futuro? Seu romance com um homem misterioso que surge num píer escuro mostra a mais clássica vocação do amor romântico - ou seja, encontrar um par que compartilhe conosco a missão de nossas vidas , seja ela qual for...Outra vez aparece algo de Zucco em seus encontros furtivos, o pai e a mãe, um guarda, um romance... Metá é um apaixonado apático. Um sádico pueril. Metá não é capaz de sofrer, mas despede-se. Metá não apresenta medo, mas é capaz de mentir para o guarda que o interpela e assim livrar-se do perguntador. Então, Metá pode matar e noutro instante oferecer colo para aquele que gravemente ferido, certamente, e em breve, encontrará a morte. Nada disso lhe confere consciência, bem como também não lhe rouba a insanidade. Metá não oscila na luz e não vive sua sombra. Aqui os cortes da dramaturgia impossibilitam uma visão mutável de sua personalidade, que, por conta deste procedimento, parece fixa. Então, a forma do teatro interfere em seu conteúdo discursivo (dramatúrgico), e é possível dizer que a peça não acontece roubando a lógica de seu protagonista absoluto. Seria, então, uma peça com dinâmicas anormais para dar conta de um conteúdo em constante (e radical) contradição entre a norma e a vontade.A montagem apresenta rara coesão e é notável o esforço por abarcar as propostas do processo e manter a trajetória das personagens às claras. O diretor, como já foi dito, organiza a obra através de movimentos tradicionais do cinema contemporâneo, decisão esta que possibilita forjar bases para a sólida qualidade narrativa que, mesmo às vezes atravancada pela iluminação desajeitada e excêntrica, resiste em seu objetivo maior, que certamente é o de manter o expectador capaz de seguir ponto à ponto a história que evolui com simpática e carismática intensidade.

foto Rafael Bisbis

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