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Cachorros Não Sabem Blefar

Cia. 5 Cabeças

Texto e direção: Byron O’Neill

Sesc Ipiranga

Para começar um comentário da peça "Cachorros Não Sabem Blefar", evocarei a memória daqueles que acompanharam outro trabalho que ocupou o mesmo Sesc Consolação. Quem assistiu ao excelente "Nós", do também mineiro Grupo Galpão, fatalmente, perceberá no contraste um exemplo cruel de como a forma é capaz de interpor o raciocínio.Veremos como é possível que a mesma fórmula, nas mãos de magos distintos, pode produzir feitiços radicalmente opostos.Se "Nós" organizou eixos complexos e claros, segundo dispositivos apóricos e soluções estéticas que não tornaram a obra impermeável ao entendimento do público, realizando assim um trabalho absolutamente singular, aqui, em " Cachorros Não Sabem Blefar ", efeito similar não se reitera. "Cachorros Não Sabem Blefar” parece estudar estes elementos complexos para, lamentavelmente, produzir cartazes cênicos que resumem a possibilidade de "experiência absurda".O grupo rebaixa a experiência até sua mais alegórica dimensão.Uma aporia é quando o significado não é capaz de suportar, formalmente, o sentido da linguagem. Assim como na matemática onde existem equações que não fecham , no campo da língua existem ideias que não acontecem, são incapazes de sintaticamente fazer caber a experiência do que significam.Poderíamos falar do teatro do absurdo, ou seja, ordenada estrutura onde o sentido se cruza num curto circuito com a retórica, dando conta do intuito histórico de revelar os efeitos desumanos e subjetivos da segunda guerra, mas não é o caso.Citemos, ainda em tempo, como exemplo, um tradicional oriki - exu atira pedra hoje para acertar pássaro ontem. Buscou-se, como neste oriki, realizar uma obra incompleta em si e esteticamente alinhada com o conceito do desencontro. Já daqui podemos apontar a inocente escolha do grupo. Pautar fábula, forma, estética e jogo retórico no mesmo eixo sem criar o pacto de que viajaremos até um estilo específico e datado, sim, parece ser o que mais sufoca as possibilidades da montagem.O que nos primeiros cinco minutos apontam um caminho quiçá provocativo e dinâmico, rapidamente acaba num ouroboros dos próprios signos esvaziados. Fica no ar a carência de um contexto capaz de amparar a montagem. E a resistência do grupo em aceitar que esta cena não carrega nada de realmente novo, cansa-nos.No meio do caminho de uma forma que deixasse de lado o fetiche e manifestasse alguma relevância social , conjectural , estética ou discursiva, a obra optou pelo loopping psicodélico, banalizando-o com mais e mais procedimentos espelhados.E o texto, carismático por natureza das charadas e enigmas, até chega a despertar perguntas e risadas, porém, não estando rendido ao sentido racional ou ao esquema dialógico tradicional, acaba por desembocar num produto teatral falho.O trabalho atende aos caprichos do âmbito estudantil, pedagogicamente experimental em detrimento de um conteúdo menos codificado e mais compartilhável.O teatro é naturalmente filho da urgência dos temas de seu tempo, portanto gera incomodo presenciar uma obra autorizada a não significar nada que possa conectar-se, sem pirotecnia retórica, aos assuntos correntes.Um trabalho tradicionalmente visual que abre mão de ser um objeto no mundo visível para tornar-se uma ideia no papel, descumpre o caráter popular da arte cênica, fetichiza-a estilisticamente. E, diante de tantos golpes contra o bom senso intelectual, a esfera crítica e política, social e humana do teatro, além de fragilizada, vê-se desprotegida.O teatro, assim, fica à mercê de tornar-se desinteressante e tedioso.E caso haja neste trabalho a tentativa de organizar uma vanguarda, me parece válida a recomendação de que os artistas sempre leiam cronologicamente as bibliotecas, ou, o risco de encenarmos um atraso intelectual de décadas, deixará de ser um risco.É preciso que o público deixe de entrar às cegas em experiências que interessam essencialmente aos artistas amadores que realizam obras para dar corpo aos seus desejos íntimos, no palco.Afinal, um enigma , tradicional jogo para crianças em desenvolvimento , quando dilatado em forma de ágora , aos olhos do público , gerará cansaço não só estético como social, parecendo uma recontagem de todas as deficiências do teatro contemporâneo.Por fim, e até como metáfora para o descompasso que assistimos surgiu um cansado e frouxo "fora Temer!”, este, com deselegância, tentou criar alguma empatia com a plateia.O brado vazio encontrou no público uma gelada resistência. Portanto, ao que se vê, e como notei, se os atores estavam dispostos a profanar a catarse parca que propuseram e o público, sempre juiz da cena, não estava.O coro que não se formou ao redor desde brado fora de hora, funcionou como guardião de uma catarse que não houve.E ficaríamos todos mais satisfeitos se a Cia, num acerto, encerrasse a viagem mal fadada sem, como último ato, sofrer desta consciência tardia. Este lapso impositivo, impondo a opinião pessoal acima da experiência coletiva da arte, deu nó na sequência de desamparos artísticos do grupo.

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