MATA TEU PAI
Texto: Grace Passô
Direção: Inez Viana
Elenco: Debora Lamm
Entre as maiores dificuldades está a de me desvencilhar dos vícios de entendimento do feminino. Sendo homem, certamente a minha educação esconde de modo muito perturbador um panteão de julgamentos e preconceitos que me formataram, exigindo esforço e consciência. Aceitar essa deformação é dolorido e triste. E, sobretudo, fundamental. Então sou apenas, na melhor possibilidade, uma tentativa; jamais um acerto. E o feminino que precisa ser também meu e para mim, esvai, evapora, restando um sujeito plano e conduzido, pequeno e impreciso, perigoso e problemático. É preciso encontrar outras maneiras de recuperar o inexistente. Atrair o vocabulário a partir de experiências não auto-conduzidas. E a arte, dentre muitas, é de fato uma das mais especiais. Cabe ao teatro o convívio de modo direto, simbólico, metafórico, subjetivo, sem que um anule o outro. A soma de como essa experiência se acumula é arrebatadora, incontrolável, definitiva. Isso, quando o teatro apresentado se realiza de modo singular, instituindo uma tríade particular que se assina na maneira como retórica, estética e presença se reúnem. É o que acontece em Mata teu Pai. Três artistas. Três mulheres. A retórica através da palavra de Grace Passô, a estética pela direção de Inez Viana, a presença de Débora Lamm. Não é possível falar do espetáculo sem olhar cada uma. Grace atinge tamanha maturidade poética na escrita que suas frases agem como cortes profundos em nossas verdades; rasga-nos ao meio sem piedade, sem pudor; violenta, violentando-nos. Tudo isso, através de uma criação cênica pela qual idosas e idosos estão em cena, acompanhando a atriz, como ampliação do tempo que se despedaça a cada novo instante. Deixam de ser figurantes, são sobretudo a ressignificação dos silêncios e vazios provocados ao feminino por infinitas formas de opressão. E Débora, protagoniza de modo magistral e visceral essa versão do mito. Sim, há um mito nisso tudo. Pois o espetáculo é a versão dessas três mulheres para Medéia. Superam a estratégia trágica clássica e propõem a atualização sem nenhum medo do risco. E vão mais fundos do que qualquer outra leitura por aqui. Se algo mais é possível ser dito, é a vontade por silêncio que toma a alma ao final. Nada é possível ser verbalizado. Fica a dor, fica a ausência exposta, fica a impossibilidade de solução que não pelo confrontamento. Fica a poesia anárquica que reinventa a própria anarquia enquanto discurso de revolta. Mata teu Pai não é apenas um espetáculo. É além de tudo um acontecimento ao teatro brasileiro.
foto Elisa Mendes
>> A revista Antro Positivo viajou a convite do Festival de Curitiba.