ÚLTIMA MEMÓRIA
de Sara Carinhas
foto Estelle Valente _ Teatro São Luiz I Lisboa 2023
por Ruy Filho
Diz-se impressionante quando estamos diante a algo que nos toma de assombro, seja pelo aspecto que for. Pode-se compreender também sob explicações mais específicas: como sendo tudo aquilo e aquela/aquele cuja manifestação impressiona o observador. Impressionante, impressionar, dar impressões, imprimir. Trata-se, por fim, da capacidade de imprimir no outro uma experiência, e se singular, ainda melhor. Dentre as infinitas ofertas de impressão a partir da experienciação de linguagens artísticas, uma tem sido abandonada, infelizmente: o afeto. Muito na criação contemporânea recusa os afetos, salvo quando pertencentes a discursos problematizadores e de questionamentos aos vícios mais terríveis pelos quais corpos e identidades são aleijados de seus direitos. Por isso, a urgência que deu a esses afetos presença constante e obrigatória nos processos criativos atuais. Não há que recusá-los. Mas é perigoso ao sentir se permanecermos muito tempo limitados por essas hierarquia de afetos sociais, políticos e comportamentais. Cabe a cada artista compreender o que busca oferecer como experiência e quais afetos imprimir ao público. Discursos podem ser impressionantes, só que, em excessos, perdem suas particularidades enquanto ação. Encontrar como ter nos outros afetos argumentos igualmente potentes é mesmo uma conquista difícil. Esse é o ponto de Última Memória, de Sara Carinhas. A artista – e esse termo é o melhor a lhe descrever – traz outro viés e convite ao público ao criar uma cena especialmente afetuosa e afetiva. Somos arrebatados pelo inesperado - pois há tempos passamos a frequentar as salas de espetáculo distantes do sentir cuja manifestação é tão poética na forma de olhar ao mundo quanto nos requer poéticos ao encontro próprio em silêncio. A maneira como Sara Carinhas organiza a dramaturgia permite ao espectador assistir como se estivesse junto à sua construção. Entre memórias, citações intelectuais, referências e sugestões, com humor e seriedade em medidas complementares, sem dar-lhes demasiado peso, a artista imprime outro estado de presença, em sedução ao íntimo que se afirma, em especial, pelo reconhecimento de seremos todos ali humanos. Preenche argumentos complexos com contextos pessoais, e faz das histórias comuns a experimentação desses argumentos sem recorrer ao didático. Ao contrário. Sara tem a qualidade dos escritores que dominam as palavras e como estas serão absorvidas pela audiência. Trata-se, então, menos da memória que se perde e mais das memórias que se constrói e como sobreviverão ao tempo, ainda que o passado seja materialidade inestimável. Por pedir que cada espectador inclua sua primeira memória, quais recebe na entrada do teatro, Sara organiza pelo afeto comum essa memória coletiva sobre estarmos vivos, aqui, nesse agora. Imprime ao espectador sua condição de presença ao instante. As lembranças que se ouve são dela, inventadas, dos outros e de todos? As reações escondem as autorias enquanto confirmam o acontecimento reconhecido por pequenos detalhes. As diferenças não servem para individualizar. Em Última Memória, as primeiras recordações servem para confirmar as mesmas sensações ocorrerem em diferenças tão sutis que parece vivermos todos a mesma história desde sempre. Não é por fim um espetáculo conferência, como pode parecer em primeira observação do formato – a artista fala-nos como se fosse ela, explica como se houvesse uma tese a ser demonstrada, pois ser ela mesma é artifício de performatização de sua identidade que, desde o início, é a nossa em reflexo expandido, assim como as ideias trazidas por escritas e intelectuais, de Hilda Hirsch a bell hooks, não são teses, são paisagens pelas quais nos conduzirá durante uma hora sem qualquer tentativa de comprovação e sim de que a sintamos. Também é pouco dizer ser Última Memória uma obra do teatro documental. Documenta-se, é verdade, mas enquanto dispositivo narrativo ao surgimento de simbologias mais amplas que só podem ser percebidas pelos afetos comuns e não pelo entendimento de sua própria comunicação. Sara Carinhas faz muito mais. Quer uma obra de encontro, pela qual se expõe ao outro e convida o outro a uma trajetória sensível pela memória, pelo temer não a ter, por dividir ao coletivo a responsabilidade de torná-la pulsante ao futuro. Se as últimas memórias propostas nesse trajeto em conjunto são o amor e o samba, então muito há ainda a ser inventado e sentido. Amar e sambar requerem o outro, convidam a existirmos outros, amplia-nos enquanto outros. Imprimir a vontade por amar as memórias que escolhemos construir e compartilhar. E, enquanto o fazemos, comemorar, beber e dançar. Essa é mesmo uma proposta impressionante.
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